domingo, 26 de novembro de 2017

Medianeira significa 'Mediadora, aquela que faz a mediação; que está no meio, entre Deus e os homens'. A devoção a Nossa Senhora Medianeira vem desde os primórdios do cristianismo. A Igreja sempre professou a fé na intercessão e na mediação de Maria pelo fato de ela ser mãe e corredentora da humanidade junto com Jesus. Mas foi no ano de 1921 que o papa Bento XV instituiu a festa dedicada a ela. Por isso, o Cardeal Primaz da Bélgica, Dom Mercier, teve a inspiração de criar o ícone de Nossa Senhora Medianeira. A imagem, pintada por uma freira franciscana chamada Angelita Stefani, é rica em significados e contém toda a teologia da Mediação de Nossa Senhora. Vamos conhecê-la.

O ícone de Nossa Senhora Medianeira ' visão geral

O ícone de Nossa Senhora Medianeira é dividido em três partes: acima de tudo está a Santíssima Trindade; abaixo vemos Nossa Senhora e, aos pés dela, a terra com o sol e a lua. Assim, numa visão geral, vemos que a Virgem Maria está "entre" Deus e a terra, "entre" Deus e a humanidade. O ícone, porém, tem vários outros símbolos cheios de significados e mensagens.

Os símbolos na Santíssima Trindade

O círculo

A Trindade está dentro de um círculo. O círculo simboliza a eternidade, pois é uma figura geométrica que não tem começo nem fim. Assim é Deus: não tem princípio nem fim. Ele é o princípio de todas as coisas.

Os raios que saem do círculo

Os raios que saem do círculo simbolizam a glória de Deus. Várias passagens bíblicas falam da glória de Deus; que Deus habita uma luz inatingível e que o ser humano não suportaria ver a glória de Deus. Esta glória infinita provém do amor e da beleza infinita de Deus.

As letras Alfa e Ômega dentro do círculo

Alfa e ômega são duas letras gregas que simbolizam o princípio e o fim e nos falam que Deus é o Princípio e o Fim de todas as coisas.

A figura do Pai

A coroa do pai nos fala que Ele é Todo Poderoso, tem todo o poder, é o criador de todas as coisas. Os cabelos e a barba branca do Pai simbolizam a sabedoria e a eternidade de Deus. A túnica branca simboliza a pureza e a perfeição de Deus, pois nEle não existem manchas ou imperfeições. O manto vermelho do pai simboliza o sangue de deu Filho, Jesus, entregue pela humanidade.

A pomba " Espírito Santo

A pomba no peito do Pai simboliza o Espírito Santo, que é o amor entre o Pai e o Filho, sendo a terceira pessoa da Santíssima Trindade. Estando sobre a cruz de Jesus significa que Ele guiou os passos de Cristo até sua entrega total na cruz.

Cristo Crucificado

O Cristo crucificado também está dentro do círculo. Portanto, é Deus. É a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Estar crucificado dentro do círculo da eternidade significa que o sacrifício de Cristo na cruz é para sempre e sempre atual. Observe que o Pai segura a cruz de Cristo com as mãos, simbolizando que o Pai recebe o sacrifício de seu Filho pela nossa salvação.

Os seis anjos abaixo do círculo

Os seis anjos representam a criação. O número seis é o número da criação, pois Deus criou todas as coisas em seis dias. Estando em volta do círculo na sua parte inferior, significa que toda a criação presta louvor e adoração Deus.

A imagem de Nossa Senhora Medianeira

A frase de São Bernardo

N altura do rosto da Virgem Maria há uma frase de São Bernardo escrita originariamente em Latim e traduzida para o português. Ela diz: 'A vontade de Deus é que recebamos tudo por Maria'. Esta frase encerra toda a teologia da Mediação de Nossa Senhora. Foi através dela que Jesus Cristo se fez humano e conquistou para nós a salvação.

Os raios de Nossa Senhora Medianeira

Os raios simbolizam as graças que chegam até nós pela mediação de Nossa senhora Medianeira. Eles saem da cruz de Cristo, simbolizando que todas as graças nos vem pelos méritos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. As graças vem de Deus e não de Maria. Depois, os raios saem dos braços abertos da Virgem Maria e descem para a terra, simbolizando que a Virgem Maria é despenseira, distribuidora das graças de Deus. Este símbolo é ligado ä imagem de Nossa Senhora das Graças e tem o mesmo significado.

A coroa de Nossa Senhora Medianeira

A coroa de Nossa Senhora Medianeira simboliza que ela é Rainha do céu e da terra.

A túnica rosa de Nossa Senhora Medianeira

A túnica rosa de Nossa Senhora Medianeira simboliza a alegria da salvação que ela ajudou a trazer e a alegria das graças que ela transmite para a humanidade.

O manto marrom amarrado à cintura de Nossa Senhora Medianeira

O manto marrom amarrado à cintura de Nossa Senhora Medianeira simboliza que ela se coloca numa posição de serviço e humildade. O Marrom é a cor da humildade. Ao se tornar 'Medianeira', Nossa Senhora quer servir à humanidade, pois ela ama a todos e quer que todos recebam as graças maravilhosas que Deus tem reservadas para nós.

O sol e a lua aos pés de Nossa Senhora Medianeira

O sol e a lua simbolizam o tempo, ao contrário da eternidade. Aos pés de Nossa senhora significa que a Mediação de Maria acontece em favor de nós que ainda não estamos na eternidade com Deus. Quando estivermos lá, na visão da felicidade eterna, junto com Maria, não precisaremos mais desta mediação, mas teremos atingido o objetivo de nossas vidas e o objetivo das graças que a Virgem Maria transmite, que é chegar ao céu

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Arca da Nova Aliança

CANTAM OS ANJOS ARAUTOS DA ARCA

Para os judeus do primeiro século, o choque do Apocalipse foi certamente o relato de João no final do capítulo 11. É aí então que, após ouvir os toques das sete trombetas, João vê o templo no céu aberto (Ap 11,19) e, dentro dele, um milagre!- A Arca da Aliança.
Essa teria sido a notícia do milênio! A Arca da Aliança, o objeto mais sagrado do antigo Israel, estava desaparecida havia seis séculos. Por volta de 587 a.C., o profeta Jeremias escondeu a arca, a fim de preservá-la da corrupção, quando os invasores babilônicos chegaram para destruir o Templo. Podemos ler essa história no segundo livro dos Macabeus:

No momento em que chegou, [Jeremias] descobriu uma vasta caverna, na qual mandou depositar a arca, o tabernáculo e o altar dos perfumes; em seguida, tapou a entrada. Alguns daqueles que o haviam acompanhado voltaram para marcar o caminho com sinais, mas não puderam achá-lo. Quando Jeremias soube, repreendeu-os e disse-lhes que esse lugar ficaria desconhecido até que Deus reunisse seu povo e usasse com ele de misericórdia. Então, revelará o Senhor o que ele encerra e aparecerá a glória do Senhor com uma densa nuvem. (2Mc 2,5-8)

Quando Jeremias fala da "nuvem", ele quer dizer a shekinah, ou seja, a nuvem de glória, que envolvia a Arca da Aliança, a qual significava a presença de Deus. Dentro do templo de Salomão, a arca ocupava o Santo dos Santos. Na verdade, era a arca que fazia daquele lugar do santuário o mais sagrado de todos os lugares. A Arca da Aliança trazia as tábuas da Lei, nas quais o dedo de Deus havia escrito os dez mandamentos e um pouco do maná, o pão caído do céu que Deus havia dado ao seu povo durante sua permanência no deserto. Trazia também em seu interior a vara de Aarão, o símbolo de seu ofício sacerdotal. Feita de madeira de acácia, a arca tinha forma de uma caixa, coberta com ornamento de ouro e dois querubins esculpidos em suas extremidades. No topo da arca estava o propiciatório, sempre desobstruído. De pé diante da arca, dentro do Santo dos Santos*, ficava a menorah, um candelabro de sete braços. Contudo, os primeiros leitores judeus do Apocalipse sabiam desses detalhes só da história e da Tradição. Desde a época de Jeremias, o esconderijo da arca nunca tinha sido encontrado e a reconstrução do templo não contava com a arca em seu Santo dos Santos, nem com a shekinah, nem maná, nem querubins no propiciatório. Então, vem João dizendo ter visto a shekinah (a "glória de Deus", Ap 21,10-11.23) e o mais incrível de tudo, a Arca da Aliança.

MARIA TINHA UM PEQUENO CORDEIRO

Jesus prepara seus leitores de várias maneiras para o aparecimento da arca, a qual se revela, por exemplo, após o toque da sétima trombeta do sétimo anjo vingador, numa clara alusão ao Israel da Antiga Aliança. Na primeira e maior batalha que Israel lutou ao entrar na terra prometida, Deus ordenou ao povo eleito para carregar a arca à frente deles para o combate. Especificamente, a passagem de Apocalipse 15,11 ecoa Josué 6,13, que descreve como, durante seis dias, os quais antecederam a Batalha de Jericó, os sete sacerdotes guerreiros de Israel marcharam ao redor da cidade com a Arca da Aliança até que, no sétimo dia, eles tocassem as trombetas, fazendo ruir os muros da cidade. Para o antigo Israel, a arca foi, em certo sentido, a arma mais eficaz, pois representava a proteção e o poder de Deus Todo-Poderoso. Do mesmo modo, o Apocalipse mostra que o novo e celeste Israel também combate a batalha na presença da arca. Como seria de se esperar, a arca aparece com espetaculares efeitos especiais: "Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a Arca da sua Aliança. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e granizo." (Ap 11,19) Imagine que você é um leitor do primeiro século, criado como um judeu. Você nunca viu a arca, mas a religião e toda a sua educação religiosa lhe ensinaram a todo instante sobre a restauração do templo. João a realiza antecipadamente, de modo que quase parece estar provocando seus leitores ao descrever o som e a fúria que acompanhavam a arca. A dramática tensão se torna quase insuportável. O leitor quer ver a arca como João a vê. O que se segue, então, é chocante! Nas nossas bíblias atuais, depois de todo esse desenvolvimento, a passagem, de repente, dá uma parada brusca como o capítulo 11 a conclui. João nos promete a arca, mas parece pôr em cena um final abrupto. Devemos ter em mente, entretanto, que as divisões em capítulos no Apocalipse, bem como em todos os livros bíblicos, é artificial, feita por escritores na Idade Média. Logo, não há capítulos no livro original de João; tudo era uma narrativa contínua. Assim, os efeitos especiais do final do capítulo 11 serviram como um prelúdio imediato para a imagem que, agora, aparece no capítulo 12. Podemos ler essas linhas juntos como que descrevendo um único evento: "Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca da sua aliança [...]. Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz". (Ap 11,19-12,1-2). João nos mostra a Arca da Aliança... e é uma mulher. Na verdade, o Apocalipse pode parecer estranho. Anteriormente, nós vimos uma noiva que aparecia como uma cidade; agora, nós vemos a arca que aparece como uma mulher.

 LINHAS DE BATALHA

Quem é essa mulher que é também uma arca? A maioria dos exegetas concorda que, num primeiro nível pelo menos, essa mulher (como a noiva de Apocalipse 19) representa a Igreja, que trabalha para dar à luz os seus filhos que creem, em todas as épocas. No entanto, é pouco provável que a mulher descrita por João seja, exclusive ou mesmo principalmente, para representar a Igreja. O cardeal Newman nos oferece um argumento convincente a respeito do porquê essa personificação não ser suficiente na leitura de Apocalipse 12. A imagem da mulher, segundo as Escrituras geralmente em uso, é muito ousada e importante para uma mera personificação. A Escritura não é muito favorável às alegorias. De fato, temos várias figuras lá, quando, por exemplo, nos fala do braço ou da espada de Deus; assim, também, quando fala de Jerusalém ou da Samaria, no feminino, ou da Igreja como uma noiva ou como a videira. Mas a Escritura não é muito dada a tecer idéias abstratas ou generalizações de atributos pessoais. Esse é o estilo clássico, e não o da Escritura. Xenofonte colocou Hércules entre a Virtude e o Vício, representados como mulheres. Realmente a mera personificação não parece corresponder ao método de São João durante todo o episódio com a mulher. Ele pode apresentar outros personagens fantásticos que podem assumir certas idéias, mas não há dúvida de que eles também são pessoas reais. Por exemplo, poucos exegetas questionam a identidade do "filho varão", a que a mulher dá à luz (Ap 12,5). Dado o contexto do Apocalipse, este menino só poderia ser Jesus Cristo. São João nos fala que a criança "há de reger todas as nações com cetro de ferro", e isso, claramente, é uma referência ao Salmo 2,9, que descreve o rei messiânico prometido por Deus. João também acrescenta que esta criança "foi arrebatada para Deus e para o seu trono", o que só pode se referir a Jesus que subiu aos céus. O que é verdade para o menino também o é para o seu inimigo, o dragão. João afirma claramente que o dragão não é apenas uma alegoria, mas uma pessoa específica: "a primitiva serpente, chamada Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro." (Ap 12,9) De modo semelhante, o aliado do dragão, a "besta saindo do mar" (Ap 13,1), também corresponde a uma pessoa real. Observemos essa besta horrível e, depois, olhemos para trás, na história, a fim de vermos o que João viu. A besta tem "dez chifres e sete cabeças, com dez coroas sobre os chifres e um nome blasfemo sobre sua cabeça". A partir do capítulo 7 do livro de Daniel, sabemos que, em profecia, tais bestas geralmente representavam dinastias. Por exemplo, os chifres são um símbolo comum do poder dinástico. Devemos nos perguntar, então: no primeiro século, que dinastia foi mais ameaçada pela ascensão do rei messiânico a partir da linhagem de Davi? O Evangelho de Mateus (cap. 2) deixa isso bem claro: era a dinastia de Herodes, a dos herodianos. Herodes, afinal, era um não judeu, nomeado pelos romanos para governar a Judéia. A fim de fortalecer o seu reinado ilegítimo, os romanos dizimaram todos os herdeiros da dinastia judaica dos Hasmoneus. E Herodes dizia ser rei em Jerusalém, indo bem longe ao reconstruir o templo em grande escala. Herodes, um líder carismático e ao mesmo tempo gentil, ganhou aos poucos o medo, a gratidão e até mesmo a adoração de seus súditos ao longo de seu sangrento reinado. O primeiro assassinato por ordem de Herodes foi o de sua própria esposa, depois o de seus três filhos, sua sogra, um cunhado e um tio, para não mencionarmos todas as crianças de Belém. Além disso, Herodes tinha influenciado os sacerdotes do templo durante seu governo. Afinal, a quem Herodes consultou quando soube do Messias recém-nascido? Sua dinastia era uma falsificação satânica da Casa de Davi. Como o verdadeiro herdeiro de Davi, Salomão, Herodes tinha construído o templo e mantinha várias mulheres. Com a ajuda dos romanos, ele também conseguiu unificar a terra de Israel como não ocorria havia séculos. A dinastia dos Herodes se tornaria, para eles mesmos, o maior obstáculo à verdadeira restauração do reino de Davi. Sete Herodes governaram após seu patriarca e fundador, Antípatro, e havia dez Césares na linha imperial de Roma, desde Júlio César até Vespasiano. A besta com dez chifres e sete cabeças corresponde curiosamente aos sete Herodes coroados que governaram apoiados pelo poder da dinastia dos dez Césares. Afirmar que Apocalipse 12 é um exercício de personificação seria uma simplificação grosseira. A visão de João, embora rica em simbolismo, descreve uma história real com pessoas reais, embora numa perspectiva celestial.

MAIS DO QUE UMA MULHER

 João descreve as lutas em torno do nascimento e da missão do Messias. Simbolicamente, ele mostra quais papéis teriam Satanás, os Césares e os Herodes. No entanto, ainda na peça central de Apocalipse 12, o elemento mais proeminente é a Mulher, que é a Arca da Aliança. Se ela é mais do que a encarnação de uma idéia, então quem é ela? A Tradição nos diz que ela é a mesma pessoa a quem Jesus chama de "mulher" no Evangelho de João, a reprise daquela pessoa que Adão chama "mulher" no Jardim do Éden. Como no início desse Evangelho, esse episódio do Apocalipse evoca repetidamente o Protoevangelho de Gênesis. A primeira pista é que João, tanto no Apocalipse quanto no Evangelho, nunca revela o nome dessa pessoa; refere-se a ela apelas pelo nome que Adão deu a Eva no paraíso: ela é "mulher". No mesmo capítulo do Apocalipse, um pouco adiante, aprendemos que, como Eva era a "mãe de todos os viventes" (Gn 3,20), assim também a mulher da visão de João é mãe não simplesmente do "menino", mas de todo "o resto de sua descendência", mais semelhantes "àqueles que guardam os mandamentos de Deus e dão testemunho de Jesus". (Ap 12,17) Sua prole, então, são todos aqueles que têm nova vida em Jesus Cristo. A nova Eva cumpre a antiga promessa de ser, de modo perfeito, a mãe de todos os viventes. Contudo, a referência mais explícita do Apocalipse em relação ao Protoevangelho é a figura do dragão, a quem João identifica claramente como a "primitiva serpente" do Gênesis, "o sedutor do mundo inteiro" 9Ap 12,9; ver Gn 3,13). O conflito que se segue, então, entre o dragão e o filho cumpre fielmente a promessa de Gênesis 3,15 quando Deus jurou colocar "inimizade" entre a serpente e "a mulher; entre a tua descendência e a dela". E a angústia da entrega da mulher parece que vem em cumprimento das palavras de Deus a Eva: "Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores..." (Gn 3,16) Claramente, João pretende relacionar Eva, a mãe de todos os viventes, com a mulher do Apocalipse, a nova Eva, a pessoa que ele identifica como "mulher" no Evangelho.

MARIA MARIA, UM RELICÁRIO?

Ficamos, no entanto, com a questão de como essa mulher pode ser a reverenciada Arca da Aliança. Para entendermos isso, precisamos primeiramente considerar o que fez a arca ser tão santa. Não foi a madeira de acácia ou os ornamentos de ouro. Nem foram as figuras esculpidas dos anjos. A arca continha a aliança, o que a fez se tornar santa. Dentro dessa caixa de ouro estavam os dez mandamentos, a Palavra de Deus escrita pelo dedo de Deus; o maná, o pão milagroso enviado por Deus para alimentar seu povo no deserto; e o cajado sacerdotal de Aarão. O que quer que tenha feito a arca ser santa, fez Maria ser ainda mais santa. Vejamos. Se a primeira arca continha a Palavra de Deus na pedra, o corpo de Maria continha a Palavra de Deus encarnada. Se a primeira arca continha o pão milagroso do céu, em seu corpo Maria tinha o próprio Pão da Vida que vence a morte para sempre. Se a primeira arca continha o cajado do primeiro sacerdote do povo, o corpo de Maria continha a própria pessoa do sacerdote eterno, Jesus Cristo. O que João viu no templo celeste era muito maior do que a arca da antiga Aliança, a arca que tinha irradiado a nuvem de glória antes da menorah, no coração do antigo templo de Israel. João viu a arca da nova Aliança, o vaso escolhido para levar a aliança de Deus ao mundo de uma vez por todas.

OBJEÇÕES NEGADAS?

Os primeiros Padres da Igreja deram forte testemunho dessa identificação de Maria com a Arca da Aliança. Ainda assim, alguns exegetas levantaram algumas objeções, às quais os Padres responderam. Por exemplo, alguns se opuseram quanto às dores de parto da mulher, que pareciam contradizer à longa Tradição de que Maria teria dado à luz sem as dores do parto. Muitos cristãos acreditam que, uma vez que Maria foi concebida sem o pecado original, ela estaria isenta das maldições de Gênesis 3,16; portanto, não sentiria qualquer sofrimento no parto. Ora, o sofrimento de uma mulher não necessariamente está relacionado às dores físicas do parto. Em outras passagens do Novo Testamento, São Paulo usa a dor do parto como uma metáfora para o sofrimento espiritual, para o sofrimento em geral, ou mesmo para o longo tempo de sofrimento do mundo na expectativa da Redenção no fim dos tempos (Gl 4,19; Rm 8,22). O sofrimento da mulher no Apocalipse poderia representar o desejo de trazer Cristo ao mundo; ou poderia representar os sofrimentos espirituais como o preço da maternidade de Maria. Outros exegetas se mostram preocupados com a menção aos "outros filhos" da mulher, pois tal ponto contradiz o dogma da Virgindade Perpétua de Maria. Afinal, como ela poderia ter outros filhos se ela permaneceu sempre virgem? No entanto, de novo, esses filhos não precisam ser seus filhos físicos. Os Apóstolos frequentemente falam de si próprios como "pais" das primeiras gerações de cristãos (ver 1Cor 4,15). A "outra prole" de Apocalipse 12 são certamente "aqueles que carregam o testemunho de Jesus" e, então, se tornam Seus irmãos, partilhando o mesmo Pai do céu e Sua mãe. Ainda outros são simplesmente obscurecidos pelos detalhes do relato de João, por exemplo, quando à mulher foram "dadas duas asas de grande águia, a fim de voar para o deserto [...] fora do alcance da cabeça da serpente" 9Ap 12,14). Tais passagens acreditam que representam a proteção divina dada a Maria contra o pecado e a influência diabólica. Outros vêem como uma narrativa estilizada da fuga para o Egito (Mt 2,13-15), para onde a Sagrada Família foi impulsionada pela besta de Herodes.

SUBINDO AS MONTANHAS

A maior dificuldade para os exegetas, no entanto, parece ser a singularidade aparente da visão tipológica de João no Apocalipse. Afinal, onde mais Maria é chamada de a Arca da Aliança? Um estudo mais atento do Novo Testamento nos mostra que essa visão de João não era única; mas, mais explícita do que em outras passagens; porém, certamente, não a única. Com os livros de São João, os escritos de São Lucas são a outra grande mina de ouro da doutrina sobre Maria. É Lucas quem nos narra o episódio da anunciação do anjo a Maria, da visitação a sua prima Isabel, das circunstâncias miraculosas do nascimento de Jesus, da purificação da Virgem no templo, de sua busca por seu filho aos doze anos e de sua presença entre os Apóstolos no primeiro Pentecostes. Lucas era um artista literário meticuloso que poderia alegar a vantagem adicional de ter o Espírito Santo como seu coautor. Ao longo dos séculos, os estudiosos têm se maravilhado com a forma como o Evangelho de Lucas sutilmente faz um paralelo-chave com vários textos do Antigo Testamento. Um dos primeios exemplos em sua narrativa é a história da visitação de Maria a Isabel. A linguagem de Lucas parece ecoar a narração, no segundo livro de Samuel, das viagens de Davi ao trazer a Arca da Aliança para Jerusalém. A história começa com Davi que "levantou-se e foi" (2Sm 6,2). No relato da visitação, Lucas inicia com as mesmas palavras: Maria "levantou-se e foi" (1,39). Em suas viagens, então, tanto Maria quanto Davi ultrapassaram a região montanhosa de Judá. Davi reconhece a sua indignidade com as palavras: "Como pode que a arca do Senhor venha me visitar?" (2Sm 6,9). Palavras semelhantes ecoam quando Maria se aproxima de sua prima Isabel: "Donde me vem que a mãe do meu Senhor venha me visitar?" (Lc 1,43). Note aqui que a frase é quase idêntica, a não ser que a "arca" é substituída por "mãe". Lemos ainda que Davi "dançou" de alegria na presença da arca (2Sm 6,14.16), e nós encontramos expressão similar usada para descrever o pulo da criança no ventre de Isabel quando Maria se aproximou (Lc 1,44). Por fim, a arca permaneceu na região montanhosa por três meses (2Sm 6,11), o mesmo período de tempo que Maria passou com Isabel (Lc 1,56). No entanto, por que Lucas é tão profundo nesses acontecimentos? Por que não somente dizer que a Virgem Santíssima é um tipo bíblico ou o cumprimento da arca? O cardeal Newman abordou essa questão de uma forma interessante: "Às vezes, nos perguntam por que os escritores sagrados não mencionaram a grandeza de Nossa Senhora. Eu respondo: ela estava ou poderia ainda estar viva, quando os Apóstolos e Evangelistas escreveram sobre ela. Havia um único livro da Escritura que, com certeza, foi escrito depois de sua morte e este livro (o Apocalipse) o fez, posso assim dizer, canonizando-a e coroando-a." Será que Lucas, com seu jeito calmo, foi apresentando Maria para ser a Arca da Aliança? A prova é muito evidente para explicar a credibilidade de outra forma.

OS PRIMEIROS INTÉRPRETES

A mulher do Apocalipse é a Arca da Aliança no templo celeste; e aquela mulher é a Virgem Maria. Contudo, isso não exclui outras leituras de Apocalipse 12. A Escritura, afinal, não é um código a ser decifrado, mas um mistério que nós nunca poderemos sondar plenamente. No século IV, por exemplo, Santo Ambrósio viu a mulher claramente como a Virgem Maria, "porque ela é Mãe da Igreja, pois deu à luz Àquele que é a Cabeça da Igreja"; e ainda viu a mulher do Apocalipse como uma alegoria da própria Igreja. Santo Efrém da Síria chegou à mesma conclusão, sem temer qualquer contradição: "A Virgem Maria é, mais uma vez, a figura da Igreja... Vamos chamar a Igreja pelo Nome de Maria, pois ela é digna de um nome duplo." Santo Agostinho também considerou que a mulher do Apocalipse "significa Maria, que, sendo impecável, trouxe adiante, a nossa Cabeça impecável. Trouxe também diante de si mesma a figura da Santa Igreja, para que, como Maria trouxe à luz um filho permanecendo virgem, assim também a Igreja deve, durante os séculos, vir trazendo à luz seus membros, e ainda sem perder seu estado de integridade." Como Maria gerou Cristo para o mundo, assim, a Igreja gera todos os que creem "outros Cristo", a cada geração. Como a Igreja se torna mãe dos crentes pelo Batismo, assim Maria se torna mãe dos crentes como irmãos de Cristo. A Igreja, nas palavras de um recente estudioso, "reproduz o mistério de Maria". Podemos ler todas essas interpretações como uma marcante passagem de Santo Irineu, que encontramos no último capítulo. Para o menino é, sem dúvida, "o filho puro abrindo impecavelmente o ventre puro que regenera os homens para Deus". E os "outros filhos", vemos em Apocalipse, são certamente aqueles que são regenerados para Deus, ou seja, aqueles que são nascidos do mesmo ventre como Jesus Cristo. Lido à luz dos Padres, Apocalipse 12 pode iluminar a nossa leitura posterior de todas as passagens do Novo Testamento que descrevem os cristãos como irmãos de Cristo. A palavra grega para "irmão", adelphos, literalmente significa "do mesmo ventre". De João a Irineu até Efrém e Agostinho, os primeiros cristãos acreditaram que esse ventre pertencia a Maria. A passagem se revela extremamente rica. Outros Padres viram a mulher do Apocalipse como um símbolo de Israel, a qual deu à luz o Messias; ou como o povo de Deus através de todas as épocas; ou como o império de Davi, definido em contraste aos dos Herodes e dos Césares. Ela e todas essas coisas, mesmo quando é a Arca da Aliança. Enquanto cada uma dessas interpretações é suficiente de uma forma primária ou secundária, nenhuma pode cumprir o significado principal do texto. Todas essas leituras simbólicas apontam, para além de si mesmas, a um significado primordial que é o histórico-literal. Ou, como o Cardeal Newman colocou: "O santo Apóstolo não teria falado da Igreja sob esta imagem em particular, a menos que tivesse existido uma Bem-Aventurada Virgem Maria, que foi elevada às alturas e objeto de veneração de todos os fiéis." Nas palavras de outro exegeta, a mulher do Apocalipse deve ser "uma pessoa concreta que engloba um coletivo". Além disso, o significado primário para a mulher, bem como para o seu menino, deve pertencer ao indivíduo, à pessoa histórica, Santíssima Virgem Maria, que ao mesmo tempo tornou-se mãe de Cristo e dos membros do Seu corpo, a Igreja.

Dr Scott Hahn, Salve, Santa Rainha. São Paulo: Cléofas, 2013. p.47-59

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Reflexões sobre ser respeito ao Outro

Sobre a questão do "QueerMuseu" tenho algumas angústias e perplexidades acerca de como as coisas se deram, como foram divulgadas e, acima de tudo, do nosso tempo como um todo e da distância entre aquilo que dizemos querer e aquilo que de fato fazemos... Viver em uma sociedade plural é um desafio, reconhecer e assumir que o outro é outro e é irredutível a mim e as minhas representações de mundo pode causar medo e assombro, mas, sem dúvida, acredito que por mais que nos desaloje, esse é o melhor caminho! Todos nós tendemos a dizer que amamos a diversidade de ideias e que a diferença acrescenta. Há muito de verdade nisso. Até porque todos nós queremos ser respeitados em nossas diferenças e singularidades. Contudo, a coisa complica quando nos deparamos com alguém que pensa de forma diametralmente oposta à nossa. Quando aquilo para nós é sagrado para o outro é profano e aquilo que para mim é profano ou demonizado para o outro é sagrado! Aqui é difícil reconhecer a alteridade do outro, o seu direito a ter convicções como eu as tenho. Nesse contexto, surgem os grandes empecilhos na administração das diferenças. No dia a dia, acabamos ignorando a maior parte dos casos e nos cercando daqueles que pensam como nós no que julgamos mais importante. E continuamos vivendo como se fôssemos nós os virtuosos, perfeitos, e considerando os outros coml os intolerantes, sujos, pecadores. Nos iludimos com a falsa certeza de que somos moralmente superiores e os outros ignorantes e alienados, apressamos em julgar e condenar e esquecemos as nossas próprias inconsistências e imoralidades. Acontece que em alguns momentos os outros reivindicam o falso direito de anular nossa ipseidade como nós fazemos com eles e ofendem o que nós consideramos sagrado. Neste instante bradamos de indignação frente o desprezo daqueles que não compreendem como podemos agir de um modo que consideram tão ultrapassado, retrógrado e fundamentalista. Penso que todos temos nossos sagrados e que não há ninguém que tolere tudo. Todos tem seus intoleráveis e para que a tolerância seja um direito de todos, algumas coisas realmente não podem ser toleradas. O relativismo é uma máscara que normalmente cai ardendo lugar à indignarão do mesmo modo que o mais dogmático dos dogmáticos quando vê suas crenças atacadas. Nessa época de polarização, vivemos em um grande impasse, onde cada um tem a certeza do monopólio da virtude e sabe que as trevas estão do outro lado. A multiplicidade de crenças e práticas que convivem em um mesmo espaço é enorme. E nunca antes na história da humanidade foi assim. Claro que sempre existiram discordâncias, e das mais sérias, no entanto, havia um pano de fundo consensual no qual os conflitos podiam ser resolvidos, mas a globalização e a mundialização diluiram essa estrutura em uma sociedade completamente líquida, liquidificadora e liquidificante! Infelizmente, a probabilidade para tal situação descambe na morte do diálogo e numa escalada da violência não é pequena. É só observarmos os discursos de ódio e intolerância que ganham espaço em diversas partes do mundo e em diversos segmentos sociais: na política,, na religião, nas relações entre Estados... Gostaria de ter caminhos a propor. Não os tenho. Há dias que sou tomado de uma dor enorme. Isso ocorre principalmente quando vejo defensores da tolerância sendo intolerantes com os que são de fora de seu círculo ou quando profetas da crítica são pouco críticos com os que estão dentro de seu clube. Claro que eu devia saber que isso é normal, que é humano, mas não consigo deixar de me entristecer. Não tenho caminhos. Tenho apenas meus pontos de partida. Tenho uma fé que julgo sagrada. Dela retiro a crença de que sem verdade não existe consenso sustentável e de que sem amor não há o desejo de criar pontes com aqueles de quem descordamos. Aprendi e acredito que amor e verdade são duas faces da mesma moeda, faces que não podem ser separadas sob a pena de se destruírem. Como disse alguém muito mais sábio que eu: "a verdade sem amor é desumana e o amor sem a verdade é falso". Sei que é isso é pouco e que as vezes é difícil transformar esses princípios em ação concreta. Sei também que, na minha fraqueza, nem sempre sou coerente com eles ou consigo vivê-los do modo que deveria: as vezes sou machista, preconceituoso, inquisidor! São, como disse, meu ponto de partida para pensar o mundo e para tentar agir nele. Hoje desejo explicitá-los apenas porque no caos em que vivemos talvez seja útil saber de onde cada um parte. Tocado pelo partir de alguém te convido a partir também em uma reflexão para a responsabilidade pelo outro...

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Deus está morto! Nietzsche e os niilismos


O homem louco – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’?” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §125
Talvez a frase mais famosa de Nietzsche seja também a mais incompreendida. Afinal, se ele era um ateu convicto, por que anunciar a morte de algo que não acreditava? Nietzsche possui motivos éticos e históricos para fazer tal declaração. E não é à toa que coloca palavras na boca de um “homem louco”, seu pensamento estava muito a frente de seu tempo:
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã?” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §125
Através desta famosa afirmação Nietzsche procura condensar o espírito de sua época. O filósofo faz um diagnóstico da cultura de seu tempo e denuncia o niilismo em que a Europa estava mergulhada. A questão, para o filósofo alemão, não é se existe um Deus, nem se temos como provar a sua existência. Isso é pouco! O que Nietzsche afirma é que, independente disso, a influência da religião em nossas vidas é cada vez menor.
A Igreja, os mitos, as ideias, os ritos, a moral por trás da Teologia, vemos tudo isso enfraquecendo e desaparecendo pouco a pouco. Se extinguindo. Não só a religião, mas também a crença em seus valores metafísicos, a crença em suas verdades últimas, a crença no Bem, Belo e Verdadeiro. Não temos mais medo de deus, ele agora é velho e fraco, impotente, incapaz, criação de um povo escravo, sofredor, buscando refúgio.
niilismo negativo dá conta de mostrar que a criação de um Deus só pode ser sintoma de uma vontade doente, triste, quase uma piada de mau gosto. Com o cristianismo, diz Nietzsche, o centro de gravidade é colocado fora da vida! Esta pérfida criação teve seus dias contados, e já vemos algo novo emergir.
Se digo: “Deus existe?”, não é um problema. Não disse o problema, onde ele está? Por que coloco tal questão? Que problema está por detrás disso? As pessoas querem colocar a questão: “acredito ou não em Deus?” Mas ninguém liga se acreditam ou não em Deus, o que conta é: por que dizem isso, a que problema isso responde? E que conceito de Deus elas vão fabricar. Se você não tiver nem conceito nem problema, você fica na besteira, não faz filosofia” – Deleuze, Abecedário
Nietzsche vai ao cerne do problema: Deus está morto como uma verdade eterna, como um ser que controla e conduz o mundo, como um pai bondoso que justifica os acontecimentos, como sentido último da existência, enfim, como uma ética, como um modo de vida, independente de sua existência ou não.
A secularização da civilização prova isso cada vez mais, todo o resto é besteira! Deus está morto como um grande ditador divino que exige obediência de seus servos, que dita leis e é responsável pela verdade absoluta e unificadora. Assistimos à ruína dos valores cristãos! Eles são agora um empecilho à existência! Deus não é mais o centro das atenções, não é uma questão importante para se tratar, ele já não é uma pergunta para a qual procuramos respostas, ele não é mais capaz de sustentar valores, e por isso deve morrer.
Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §125
A morte dos ideais divinos, o início da morte desta doença chamada cristianismo é uma constatação nietzschiana. O sentido está perdido, a Verdade Eterna está acabada, de agora em diante precisamos encarar o caos do mundo à nossa frente, tudo é Vontade de Potência. Todo idealismo e platonismo estão se perdendo, por isso enfrentamos um grande perigo do niilismo: A morte de Deus deveria trazer uma liberdade nunca antes vista, mas estamos perdidos, não sabemos para onde ir nem o que fazer com isso.
Christ of Saint John of the Cross
Christ of Saint John of the Cross – Salvador Dali

Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” – Nietzsche, Gaia Ciência, §125
A morte de Deus, levada às últimas consequências, é difícil de aceitar e pode facilmente levar ao desespero. Não sabemos o que fazer, como proceder, não sabemos mais o que é certo e errado sem um padre ou um livro velho para nos guiar. A falta de referencial externo é desesperador para o homem, ele fica aterrorizado diante do mundo, procura novos deuses para obedecer.
Vemos então como o homem passa então a buscar qualquer coisa para se segurar: razão, humanismo, ciência, Leis. Deus morreu, mas ainda velamos seu corpo em várias outras práticas que não encontram justificativa no próprio mundo, mas em outros lugares. Assim, continuamos louvando a valores divinos, mas agora mascarados pela casca humana, desmasiadamente humana. Matamos Deus, mas continuamos crentes! A fé virou razão, a dona da verdade é a Ciência, nossa nova religião é o progresso do homem, o bem comum. Deleuze chama este primeiro momento da morte de Deus de Niilismo Reativo, a falsa morte de Deus, quando nos dizemos ateus, mas inventamos novos ídolos para poder dobrar nossos joelhos tão acostumados a servirem.
Novas lutas – Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra!” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §108
Não é à toa que a morte de Deus é anunciada àqueles que já não acreditam em Deus, uma plateia ateísta! Porque são eles que não possuem coragem o bastante parar responsabilizarem-se por seu ato! Alguns simplesmente não conseguem suportar tal liberdade, algumas pessoas se tornaram a tal ponto camelos, carregando valores, que se assustam só de pensar em um mundo tão desprovido de verdades. Uma vontade fraca precisa de mestres. Por isso a morte de Deus passa desapercebia até mesmo para os ateus! É isso que Nietzsche quer fazer notar! Precisamos levar este ato até o fim! Dar cabo de todas as suas consequências!
Mas como pode o homem matar Deus? A criação de um ser superior, que adoramos e prestamos obediência se eleva até os céus e volta como um meteoro, destruindo tudo à nossa volta: Deus e o homem devem morrer juntos! Se Deus está morto então o homem feito à sua imagem e semelhança também deve perecer! Se Deus é criação e testemunha da feiura humana, então ele é sintoma da doença da Vontade que o homem carrega! Mas o homem vaga pelo deserto sem saber o que fazer… nada mais vale a pena, nada mais tem valor! Ele não se sente dignos de seu ato! A dor de matar Deus é grande demais? Talvez… mas não há mais para onde voltar.
‘Eu venho cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem visto e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!'” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §125
A única alternativa frente a esse niilismo passivo é tomarmos as rédeas da situação e fazer deste niilismo um novo modo de vida. Reiteramos: a questão não é se Deus existe ou não! Isso não traz realmente o problema para o campo da Ética… onde queremos chegar? A questão é: que modos de existência a crença em Deus implicava? E que modos de existência a não crença em Deus implica? Do solo cristão nada mais pode brotar… mas isso não significa que não podemos encontrar mais terra fértil. É necessário muita coragem para transpor o niilismo fraco, aquele que debilita, desespera. Precisamos levar o niilismo até sua última potência e transformar o ateísmo teórico em um ateísmo prático!
Nietzsche diz que o importante não é a notícia de que deus está morto, mas o tempo que ela leva a dar seus frutos” – DeleuzeAnti-Édipo, p. 145
A morte de Deus é condição necessária, mas não suficiente para a criação de novos valores. Como suportar a morte de Deus sem sucumbir ao niilismo? Se Deus era a medida de todos os valores, se todos os valores eram medido pela palavra divina, então Nietzsche precisa trazer uma nova medida para estes valores que perderam seu sentido.
Nietzsche nos dá a resposta em alto e bom som: o Eterno Retorno. Sim, apenas o pensamento seletivo do Eterno Retorno nos absolve da morte de Deus porque apenas ele oferece uma nova maneira de medir e avaliar nossa existência! Esse deicídio não significa jogar todos os valores para o alto, ele implica diretamente uma transvaloração de todos os valores, um niilismo ativo. O Eterno Retorno é o contrapeso, o remédio é amargo que precisamos tomar!
Não é possível pensar o Eterno Retorno como nova medida sem levar em consideração a morte de Deus, e não é possível realizar uma transvaloração sem deixar para trás o peso da palavra divina que carregávamos nos ombros curvados.
É só com a morte de Deus e o pensamento do Eterno Retorno que temos finalmente a chance de criar novos e autênticos valores para nós. Apenas os Espíritos Livres conseguem dançar neste velório. Sem ninguém para dizer o que é certo e errado, bem ou mal, temos plena liberdade para decidir por nós mesmos, eis a bênção de nosso audacioso ato! Aqui está toda a importância da afirmação de Nietzsche: adquirimos agora a responsabilidade e a felicidade de sermos autores de nossa própria vida. Um mar de possibilidades se abriu!
O sentido de nossa jovialidade – O maior acontecimento recente – o fato de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, ‘mais velho'” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §343
O niilismo ativo, último estágio do niilismo, é o grande momento esperado por Nietzsche, o grande Sim que o filósofo legislador dá para a possibilidade de executar sua maior tarefa: criar. O que ele quer é que nos tornemos criadores reais para dar conta da morte do criador fictício! Só assim nos tornamos dignos o bastante desta grandiosa marcha fúnebre! Somente se nos tornarmos criadores seremos dignos da morte de Deus!
Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora…” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §343
Todos os deuses devem morrer para de suas cinzas extrairmos novos valores! “O que Nietzsche queria era que se passasse, enfim, às coisas sérias. Fez doze ou treze versões da morte de Deus para não se falar mais disso, para torná-la um acontecimento cômico” (Deleuze&Guattari, O Anti-Édipo, p. 145). Aí está a importância da morte de Deus que nem mesmo os ateus do tempo de Nietzsche souberam encontrar.
Sendo assim, mesmo que Deus exista, é importante que nós o matemos, para andar com nossas próprias pernas! Ou como diria Bakunin, a única maneira de Deus servir à liberdade humana seria se ele simplesmente cessasse de existir. Pois bem, somos o filho que cresceu e quer agora libertar-se. Nem Deus nem mestre! Não podemos mais nos esconder atrás da sombra divina e dizer “Deus quis assim” porque agora a responsabilidade é toda nossa! Tanto para desfazer as verdades antigas quanto para criarmos novas e melhores formas de dizer Sim à vida! Viva a morte de Deus!
De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o Velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’“ – Nietzsche, Gaia Ciência, §343

domingo, 16 de julho de 2017

Deus está morto! ... Será?

Uma vez, depois de uma das minhas aulas de filosofia, uma aluna me esperava no corredor. Naqueles dias, estávamos enfrentando Nietzsche e essa aluna sentiu-se muito "impactada" com sequência de aulas sobre a Morte de Deus! Bem, ela me conhecia das minhas pregações e ministrações, das minhas aulas de Teologia e de Catequese!
Me olhando nos olhos, deixando transparecer sua luta interior entre a fé que professava e o processo de assimilação de tudo o que tínhamos discutido, que ela estava internalizando e que existencialmente a contigiara... Então, ela me perguntou:
- Jedi, como você, que é cristão, pode falar com tanta convicção de autores como Nietzsche? Como o senhor pode concordar com ele se cremos, você e eu, em um Deus vivo, na moral e na Verdade? Não acho que minha fé seja um erro, mas concordo com o que você disse de Nietzsche... Estou confusa!
Diante de tamanha sinceridade, só tinha como resposta a minha verdade:
- Padawan, eu não vejo contradição entre a experiência existencial proposta por Nietzsche e a verdade que recebemos de Deus! Aqui, sou professor de filosofia. Não seria honesto com vocês que eu usasse minhas aulas para convencer vocês das minhas convicções ou Verdades... Aqui, minha função é pastorear vocês pela história do pensamento, por aquilo que os filósofos disseram, eu concordando ou não. Aqui, o que importa é que cheguemos a entender o que o outro disse para, então, podermos escolher melhor nossos caminhos. Veja, Nietzsche diz coisas que nos ajudam a entender o que foi o século XX e nos esclarece o modo de viver do século XXI: o niilismo é real em nossos dias! Não precisamos ser ateus como ele, mas sem dúvidas podemos ouvir e concordar com o que ele diz. Lembra do aforismo 125 de "A Gaia ciência"? Vamos lá:

"O homem Louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos?2 O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”

Percebe? O homem acende uma lanterna em pleno dia, quer dizer, prefere a segurança de suas conquistas à realidade objetiva da vida que lhe é dada! Muitas vezes, abrimos mão da vida que nos é dada por convicções de outros que nos são impostas como verdades únicas e absolutas! Não, a vida é mais que isso! A "morte de Deus" é a morte da ideia ocidental desse princípio justificador da dominação que achamos ter sobre a vida, o sentido e a realidade! De fato, não temos domínio sobre isso, sobre nada disso! Temos interpretação, na verdade, várias delas.... Mas elas são isso, interpretações! Veja que não é Deus quem morre aqui, isso, por princípio, seria paradoxal: se há Deus, Ele é Eterno! O que morre, o que de fato morre, é a pretensão soberba e vulgar da nossa condição humana de dominar e manipular o real com nossas verdades que, muitas vezes, anulam o outro, aniquilam a alteridade e a nossa própria disposição de viver a vida com intensidade!
Vamos entender o que Nietzsche quis dizer de viver a vida com intensidade no aforismo 56:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Entende, fazemos tantas coisas na vida que não gostaríamos, que nos pesam, que não suportamos, mas fazemos porque nos dizem que é certo, que é correto, que é o que esperam de nós! Ora, mas quem tem o direito de esperar algo de nós a não ser nós mesmos? Quem tem o direito de por a estrada sob nossos pés a não ser o desejo de nosso coração? Nos medimos pelos outros, pelo convívio com os outros e "no convívio com sábios e artistas facilmente nos enganamos no sentido oposto: não é raro encontrarmos por detrás dum sábio notável um homem medíocre, e muitas vezes por detrás de um artista medíocre - um homem muito notável." Perdemos tempo demais com julgamentos sobre nós mesmos e sobre os outros, quando a única coisa que importa de verdade é viver a vida com amor, no amor, para o amor... E o amor não julga, não condena! Antes, acolhe e respeita! "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal." Ninguém viverá a nossa vida e ninguém morrerá a nossa morte! Somos os únicos responsáveis pelas decisões que tomamos! E quando essa decisão é a de sermos que fomos feitos para ser, em plena abertura para o outro  e quando assim fazemos, o Outro se revela a nós! O plenamente Outro, o Totalmente Outro se achega a nossa humanidade quando reconhecemos a humanidade do outro homem! A isso chamamos, nós cristãos, de santidade! Aos santos, cabe a admiração e reverência justamente porque viveram! Aos santos, cabe o que Nietzsche chamou de Super-homem!  O niilismo negativo do Cristianismo hipócrita e farisaico deve ser superado! O niilismo reativo dos cientistas e dos comunistas não pode nos salvar de nós mesmos e de nossas misérias! O niilismo passivo dos nossos vícios e autoenganos nos condena a uma morte existencial! Só a santidade pode trazer direção a nós! Como disse a Gaudium et Spes, só Ele revela o homem ao próprio homem...

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terça-feira, 20 de junho de 2017

Como ler um livro?

A resenha abaixo é baseado nas idéias expostas por Mortimer Adler e Charles Van Doren na excelente obra Como Ler Livros: O guia clássico para a leitura inteligente, traduzido por Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara e publicado no Brasil pela editora É Realizações em junho de 2010 com 432 páginas. Como Ler Livros, publicado originalmente em 1940, tornou-se fenômeno raro: “um clássico vivo”. Trata-se do melhor e mais bem-sucedido guia de compreensão de leitura para o leitor comum.
Ele retorna em versão completamente reescrita e atualizada. O livro aborda os vários níveis de leitura e mostra como atingi-los – da leitura elementar à leitura rápida, passando pelo folheio sistemático e pela leitura inspecional. Aprende-se a classificar determinado livro, a “radiografá-lo”, a isolar a mensagem do autor, a criticar.
Estudam-se as diferentes técnicas para ler livros práticos, literatura imaginativa, peças teatrais, poesia, história, ciências e matemática, filosofia e ciências sociais. Por fim, os autores oferecem lista de leituras recomendadas, bem como testes de leitura para que você possa medir seu progresso em compreensão, velocidade e capacidade de leitura.
Você sabe ler?
Se você chegou até aqui, eu espero sinceramente que a resposta seja “Sim”. É até provável que você não só tenha dado essa resposta mentalmente, como a tenha feito acompanhar de um sorriso desdenhoso e uma exclamação como “É claro!”. No entanto, saiba que boa parte das pessoas que responde a tal pergunta com um sonoro “Sim”, na verdade deveriam simplesmente dizer, “Não como poderia”. E isso não tem nada a ver com o alfabeto.
Praticamente, todos os internautas são alfabetizados.
  1. São capazes de reconhecer palavras e frases, apreender-lhes o significado e pronunciá-las em voz alta.
  2. Uma parte expressiva deles pode até se dar ao luxo de identificar e corrigir erros gramaticais ou ortográficos daquilo que lêem.
  3. Uma parte menor ainda é habilitada para sintetizar o conteúdo do que lê, mesmo quando se trata de assuntos fora de alguma especialização que por acaso possuam.
  4. Finalmente, uma pequena minoria não só é capaz de discutir, mas também de fazê-lo com competência, identificando idéias principais e secundárias, a linha de argumentação usada para expô-las, os pontos fracos e fortes de cada argumentos, e, se for o caso, compará-los com os de outras fontes e assim chegar a uma conclusão.
Este último grupo não apenas assimila informação, mas a processa, avalia e a transforma em conhecimento.
A que grupo você pertence?
Se é a essa pequena elite de iluminados, esse texto não é para você. Ao invés de lê-lo sem proveito, sugiro que escreva outro dividindo com os menos favorecidos as suas técnicas de leitura. Se elas estiverem tão assimiladas que você nunca sequer se deu conta delas, você pode seguir o mesmo método do nosso texto de Falácias e Erros de Raciocínio e usar o método inverso: mostrar como não se deve ler. Em ambos os casos, estará aplicando melhor o seu tempo do que lendo texto que só vai dizer o que você já sabe.
Agora, se você é do tipo que:
»   chega ao fim de livro sem conseguir lembrar do início;
»   freqüentemente cochila durante leitura mais longa, mesmo quando o assunto interessa;
»   várias vezes compra livro aparentemente bom para descobrir, depois de quinze páginas, que ele não vale meia pataca;
»   tem dificuldade para resumir as idéias principais do autor, e quando tenta acaba sempre produzindo resumos muito maiores que o desejável;
»   está sempre tendo de queimar os neurônios com livros difíceis de entender, mas obrigatórios para um curso, trabalho ou aula;
»   toda vez que escuta colega falar sobre uma leitura que você também fez, acaba se perguntando, “Como é que eu não li isso?“…
Este texto foi escrito pensando em você.
1 – Informação X Esclarecimento
1.1 – Diagnóstico triste
A maior parte das pessoas lê mal. Em país como o Brasil, em que a grande massa da população não chega sequer a completar o Ensino Fundamental, isso soa como truísmo, mas aqui estamos nos referindo também aos felizardos que conseguiram chegar não apenas ao fim do Ensino Médio, mas até mesmo, e principalmente, ao Ensino Superior. Infelizmente, a posse de diploma não é garantia de capacidade de leitura eficaz.
Nossa estrutura educacional é falha, muito aquém do que seria preciso para realmente formar um cidadão, e isso vale tanto para o ensino público quanto para grande parte do particular. Além disso, em nossa cultura, ler ainda não é prioridade, o que se reflete no mercado editorial: a maioria dos livros têm baixas tiragens (o padrão de edição é 3.000 exemplares, em país com mais de 190 milhões de pessoas) e demoram a vender, salvo um ou outro best-seller, geralmente de ficção. E como se não bastasse, o fato de alguém comprar determinado livro não significa que vá lê-lo de fato, e mesmo que o leia, não significa que vá entendê-lo tanto quanto a obra merece.
Daí se deduz a pobreza do nosso país no campo da leitura. Mas problemas nessa área não são exclusividade do Brasil, tampouco de países pobres. Já na década de 70, Mortimer Adler — cujas idéias fundamentam este textos — já denunciava que a capacidade de leitura dos norte-americanos que não passava do nível do sexto ano letivo, ou seja, mais ou menos o do nosso primário ou 5.ª série. O autor cita artigo que o professor James Mursell, da Escola de Professores da Universidade de Columbia, escreveu para a revista Atlantic Monthly, em 1939:
“Os estudantes aprendem a ler de forma efetiva em sua língua materna? Sim e não. Até o quinto e o sexto ano, a leitura é de fato ensinada e bem aprendida. Neste nível nos deparamos com um progresso constante, mas a partir daí caminha-se para a estagnação. Não porque o indivíduo tenha chegado ao seu limite natural de eficiência quando ele chega ao sexto ano, porque já está mais do que provado que estudantes mais velhos, e até mesmo adultos, podem continuar fazendo enormes progressos com a orientação adequada. Tampouco isso quer dizer que todos os estudantes do sexto ano lêem suficientemente bem para todos os objetivos práticos. Um número considerável de alunos fracassa no curso secundário simplesmente porque não se mostram aptos a apreender o sentido de uma página impressa. Eles podem melhorar; eles precisam melhorar; mas não melhoram.
O aluno médio das escolas secundários já leu um bocado, e se ele entrar numa universidade vai ler mais ainda; mas provavelmente ele ainda é um leitor fraco e incompetente (observem que isso vale para o estudante médio, não para aquele que recebeu um tratamento especial). Ele pode ler e apreciar um texto simples de ficção. Mas coloque-o diante de um ensaio escrito com rigor, diante de um argumento exposto de forma concisa e cuidadosa, ou uma passagem que exige alguma reflexão crítica, e ele estará perdido. Já foi demonstrado, por exemplo, que o estudante médio revela uma incapacidade surpreendente de indicar qual é o ponto central de um texto, ou os níveis de ênfase e subordinação num texto argumentativo. Para todos os efeitos, ele continua sendo um leitor da sexta série ao longo da universidade.”
Isso era verdade nos EUA em 1939. Em 1972, quando Adler citou esse artigo, ainda era. Alguém tem dúvidas de que seja também no Brasil de hoje? Pergunte a si mesmo quantos livros você já leu este ano. Melhor ainda, experimente fazer uma pesquisa informal entre seus conhecidos: quantos livros já lidos nos últimos 12 meses?
1.2 – Leitura ativa
Para entendermos o que significa dizer que alguém tem nível de “sexta série”, como diz o texto citado, precisamos estabelecer algumas distinções fundamentais. A primeira dela diz respeito à natureza da leitura. Segundo Adler, toda leitura exige certo grau de atividade por parte do leitor, mas que pode variar tanto, que podemos falar, para fins didáticos, em leitura ativa e leitura passiva.
leitura passiva seria aquela em que predomina a mera recepção de informações. Você decodifica o texto, não pensa sobre ele. É ler com a postura com que geralmente costumamos ver televisão. Um caso extremo é quando lemos texto de maneira superficial, “passando os olhos”, sem realmente nos interessarmos por ele. O resultado é apenas uma memorização mais ou menos superficial do que se leu.
Já a leitura ativa digna desse nome é aquela em que o leitor se esforça ao máximo para captar a mensagem que o autor tenta lhe transmitir. Ele dialoga com o texto que tem diante dos olhos, tenta determinar suas idéias centrais e a ligação entre elas. Enfim, o leitor verdadeiramente ativo é aquele que “está presente” na leitura, alerta, empenhado em compreender a mensagem do autor. Quanto mais ele é, mais eficaz será sua leitura.
1.3 – Finalidades da leitura
Todo o mundo alguma vez já aprendeu algo que mudou sua maneira de entender o mundo, ou algum aspecto dele. Pode ter sido por meio de palestra, de aula, de filme, conversa com amigo ou — o que nos interessa aqui — texto escrito ou livro. É quando, mais do que informação nova, nos damos conta de que captamos algo mais essencial, uma forma de compreensão, uma espécie de ferramenta mental — a lógica por trás de alguma coisa. Nessas ocasiões, nós não apenas aprendemos o “quê“, mas também e principalmente o “como” e o “porquê“. É nossa compreensão que se alarga.
Trazendo isso para o mundo da leitura de livros (e deixando de fora aqueles voltados para o mero entretenimento), Adler dá exemplo muito simples. Suponhamos que você tenha livro que deseje ler. Ora, esse livro consiste de amontoado de palavras escrito por alguma pessoa com a intenção de comunicar algo a você. Portanto, seu sucesso na leitura vai depender do quanto você conseguirá captar da mensagem que o autor tentou comunicar.
Óbvio, não? Porém, a sua relação com o livro, continua ele, pode assumir duas formas. Se você entende perfeitamente o que autor quis passar, então vocês dois têm mentes afins e você pode ter assimilado informação, mas não necessariamente compreensão. A leitura pode simplesmente ter expressado compreensão comum que ambos já tinham antes de se encontrarem.
Agora, pode acontecer de você perceber que não está conseguindo entender tudo que o livro oferece. Algumas coisas fazem sentido, outras não. O livro tem mais a dizer do que aquilo que foi possível captar, de certa maneira ele excede o seu nível de compreensão ao lê-lo. Logo, para conseguir dar conta de tudo que o autor quis comunicar, é preciso alargar sua capacidade compreensiva. Como fazer isso?
Pode-se pedir ajuda a outra pessoa, consultar outros livros. Entretanto, Adler propõe que, de maneira geral, isso pode ser feito, antes de mais nada, trabalhando no livro. Por “livro” nos referimos, naturalmente, a obras voltadas para o leitor em geral, por difíceis que sejam.
“Sem nada além do poder de sua própria mente, você manipula os símbolos à sua frente de tal forma que passe de um estado de compreender menos para um estado de compreender mais. Esse avanço, conquistado pela mente que trabalha num livro, corresponde a uma leitura de alto nível, o tipo de leitura que um livro que desafia sua compreensão merece.”
Nem sempre a distinção entre um tipo de leitura e outra é clara. Muitas vezes ela é muito tênue. Porém, grosso modo, podemos dizer que textos plenamente compreensíveis, como jornais, revistas, são essencialmente informativos. Não nos atordoam com a complexidade peculiar de quando ultrapassamos nossos limites. Por outro lado, sempre que lemos algum texto que nos deixa, ao fim de leitura atenta, a sensação de que não entendemos tudo, ele merece ser tratado como leitura compreensiva.
“Quais são as condições sob as quais esse tipo de leitura — leitura para compreensão — ocorre? Existem duas: primeira, há uma desigualdade inicial de compreensão. O autor deve ser ‘superior’ ao leitor em compreensão, e seu livro deve transmitir de uma maneira legível os conhecimentos que ele possui e que faltam aos seus leitores em potencial. Segunda, o leitor tem que estar habilitado a superar essa desigualdade em alguma medida, se não completamente, aproximando-se sempre do escritor. Na medida em que a igualdade é alcançada, a clareza na comunicação é atingida.
Em resumo, só podemos aprender com nossos ‘superiores’. Devemos saber quem eles são e como aprender com eles. Quem possui esse conhecimento domina a arte da leitura no sentido que nos interessa neste livro. Qualquer pessoa que saiba ler provavelmente terá habilidade para, em alguma medida, ler desta forma.Mas todos nós, sem exceção, podemos aprender a ler melhor e, gradualmente, ganhar mais pelos nossos esforços, direcionando-os para textos mais recompensadores.”
Podemos resumir o que vimos até agora em uma única frase:
»   A qualidade de uma leitura depende do esforço investido nela, pelo menos em se tratando de livros inicialmente acima de nossa capacidade e que por isso são capazes de nos levar à transição de estado de entender menos para estado de entender mais.
2 – Níveis de leitura
Para Adler, existem quatro níveis de leitura. Repare que são “níveis” e não “tipos”, porque os níveis mais altos absorvem os mais baixos. São eles, do mais baixo para o mais alto:
1.      Leitura Elementar – corresponde ao nível ensinado na escola primária. A preocupação de quem lê nesse nível é com a linguagem em si, a decodificação da escrita, que com qualquer outra coisa. A pergunta que norteia esse nível é: “O que a frase diz?“.
2.      Leitura Averiguativa (também chamada de “pré-leitura” ou “garimpagem“) – este nível é voltado para a melhor avaliação possível de um texto ou livro num período curto de tempo. Por exemplo, quando estamos de passagem por alguma livraria, vemos um livro que parece interessante e precisamos saber se ele é bom antes de decidirmos se vamos comprá-lo. Existem alguns bons macetes para isso, dos quais trataremos mais adiante. Por ora, basta saber que a pergunta básica deste nível é: “Este livro é sobre o quê?“.
3.   Leitura Analítica – é a leitura completa, a melhor que se pode fazer, ativa por excelência. No dizer de Adler, “se a leitura averiguativa é a melhor que se pode fazer num determinado período de tempo, então a leitura analítica é a melhor leitura possível quando não existe limite de tempo”. É nível de leitura voltado basicamente para a compreensão, de modo que, se seu objetivo é apenas informação ou entretenimento, ele pode não ser necessário.
4.   Leitura Sintópica ou Comparativa – implica a leitura de muitos livros sobre certo tema, pondo-os em relação uns com os outros e com o tema. Estudantes de Ciências Humanas são obrigados a se familiarizar com ela. É o nível mais difícil de se alcançar, e não há pleno acordo sobre suas regras. Porém, é também o mais recompensador de todos os níveis.
Por questões de espaço, aqui trataremos apenas da leitura averiguativa e de algumas sugestões para a leitura analítica.
2.1 – Leitura averiguativa
Conforme já foi dito, este nível é, na verdade, pré-leiturainspeção mais ou menos rápida de material de que, por limitações de tempo, você não pode dar conta por inteiro ainda. Isso não significa que seja pouco útil, muito pelo contrário. Pessoas que têm uma grande carga de leitura, sejam profissionais ou estudantes, podem se beneficiar muito com o conhecimento de técnicas simples de leitura averiguativa. Afinal, mais que qualquer outra coisa, ela foi feita para poupar tempo e nem todo livro merece uma leitura analítica. Saber separar o joio do trigo é necessidade cada vez mais premente no mundo de hoje.
Aqui vai lista de sugestões para boa garimpagem, divididas em duas fases para fins didáticos. A primeira tem como finalidade saber se o livro merece leitura mais atenta; a segunda, facilitar a leitura de livro difícil:
A) Pré-leitura propriamente dita:
»   Comece pela capa e pela folha de rosto. Muitos livros hoje têm títulos comerciais que não dizem nada sobre seu conteúdo, mas deixam uma pista no subtítulo. Veja o que ele diz, se houver um. Livros expositivos, de não-ficção, normalmente têm um. Também preste atenção ao nome do autor. Soa familiar? Existe alguma referência extra? Livros de autores de algum renome freqüentemente mostram ao lado do seu nome uma indicação do tipo “Autor de [nome de obra mais conhecida]”. Também verifique a edição do livro; uma obra com várias edições e/ou reimpressões certamente é bem-sucedida e pode dar uma idéia da sua popularidade.
»   No verso da folha de rosto costuma ficar a ficha catalográfica do livro, com a notação bibliográfica e os tópicos que ele aborda. Isso é muito importante, especialmente quando se trata de livros de caráter mais acadêmicos. Por exemplo, na ficha catalográfica do excelente “A Educação dos Sentidos”, de Peter Gay, editado pela Companhia das Letras, ficamos sabendo que o livro trata de:
1. Classe média – História – século 19. 2. Sexo (Psicologia) – Aspectos sociais – século 19.
Ou seja, em uma ou duas linhas, ficamos sabendo que o livro trata da história dos aspectos sociais e da psicologia do sexo das classes médias no século 19. E ainda nem lemos uma única frase que realmente tenha sido escrita pelo autor
»   Agora que você já sabe de o que trata o livro, em linhas gerais, podemos passar aos detalhes — o índice. É o mapa da estrutura do livro e há autores que se esmeram na sua confecção, especialmente quando se trata de ensaios e trabalhos acadêmicos. Obras antigas eram extremamente minuciosas nos seus índices, com títulos que chegavam a ser verdadeiras sinopses. Porém, hoje em dia, esse é hábito que caiu em desuso, e os velhos índices analíticos muitas vezes dão lugar a índices com títulos misteriosos que mais parecem peças publicitárias. Ainda assim, você só vai saber se o índice é bom conferindo-o, então convém fazê-lo.
»   Além do índice tradicional, algumas obras contêm índices onomásticos ou remissivos nas suas últimas páginas. Ali estarão listados nomes e temáticas de forma específica, bem como as páginas onde são citados. É uma boa fonte para ter um panorama dos assuntos tratados pelo autor e pode ser útil usá-lo para identificar passagens potencialmente interessantes e fazer uma leitura rápida. Naturalmente, a importância de algum assunto pode ser avaliada pelo número de vezes em que é citado e se isso acontece muitas vezes é possível que ele seja um dos pontos centrais do livro.
»  Leia a contracapa do livro. Algumas vezes contém trechos da introdução, em outras, como em livros americanos, referências elogiosas publicadas na imprensa. O mais provável, em se tratando de obra brasileira, é que você encontre sinopse do livro feita pela editora.
»  Leia a orelha. Livros mais recentes costumam trazer breve resenha da obra, assinada por alguém importante na área temática em questão, ou uma sinopse mais aprofundada que a da contracapa. Também é comum encontrarmos uma nota biográfica do autor: onde nasceu, suas credenciais acadêmicas e/ou profissionais, outras obras que tenha escrito. Isso é especialmente útil em obras de não-ficção.
»   Dê uma olhada na bibliografia, se houver. Ali você pode ter idéia da erudição da obra que tem em mãos, bem como ter referências sobre o mesmo assunto ou outros a ele relacionados. É até possível que encontre indicação que seja mais importante para o tema que o livro que tem ora em mãos. Cruzando os autores ali indicados com o índice onomástico, pode-se ter idéia de quais das obras listadas foram mais importantes para o autor do livro que você está examinando.
»   O livro contém apêndices? Obras históricas ou jornalísticas, por exemplo, costumam deixar a reprodução mais extensa de fontes documentais ou iconográficas para essa parte do livro. Também é freqüente encontrar estatísticas, tabelas, e outros dados que podem ser muito pesados para serem transcritos no corpo da obra. Às vezes, trata-se de uma abordagem mais profunda de subtemáticas muito específicas. Em todo o caso, se há apêndices, dar uma olhada neles pode ser crucial para sua decisão sobre o livro valer ou não a pena.
»   Folheie o livro. Leia alguns parágrafos, talvez duas ou três páginas, se o tempo permitir. Os últimos parágrafos de um capítulo muitas vezes contêm síntese do que foi abordado nos anteriores,e os do último capítulo — não necessariamente o epílogo, quando existe — podem conter síntese das idéias centrais do livro todo.
»   E, por último mas não menos importante, ao folhear o livro, veja se a estética o agrada. Isso pode ser irrelevante para obras recentes, com apenas uma edição disponível, mas pode fazer muita diferença para aquelas mais antigas ou clássicas, disponíveis em várias edições, por várias editores ou, no caso de autores estrangeiros, em várias traduções. A fonte utilizada torna a leitura agradável? A impressão é boa ou há falhas? A paginação está correta? A diagramação (organização dos blocos de textos na página) é bem feita? A encadernação é de boa qualidade ou o livro parece estar prester a soltar páginas?
No caso da tradução, em se tratando de obras literárias ou mais técnicas, pode ser conveniente procurar alguma referência antes. Se toda tradução é uma traição, como dizia Voltaire, algumas traições são particularmente sórdidas e podem distorcer o pensamento do autor. Obras de filosofia e psicanálise vertidas do alemão, repletas de neologismos difíceis de traduzir para o português, por exemplo, costumam esbarrar nesse problema, como os leitores de Freud e Kant devem saber. A escolha da edição, nesse caso, se torna particularmente importante, especialmente quando algumas obras não são traduzidas do original, mas de outra tradução, geralmente inglesa ou francesa, e não raro antigas e “ajustadas” ao gosto da época.
B) Leitura superficial
Findas essas etapas, que constituem tipo muito ativo de leitura, você já será capaz de dizer bastante coisa sobre o livro que tem em mãos, e se ele vale leitura analítica. Se não valer, nem por isso deixará de saber as idéias principais do autor, que tipo de obra escreveu e ampliar sua cultura geral, quem sabe deixando o livro para uma consulta futura.
Mas suponhamos que o livro valha a pena e você opte por lê-lo de fato, ou, o que é bem possível, simplesmente tenha de lê-lo por obrigação. Ao fim de algumas páginas atentas, você descobre que a obra é complexa. Muito complexa. Você chega à página 15 e se dá conta de que não está entendendo as coisas como deveria, e torna a ler do começo. Esbarra em algumas palavras ou frases obscuras, tenta decifrá-las e descobre que está perdendo muito mais tempo do que gostaria empacado nas primeiras páginas. E a leitura se torna fonte de angústias.
Os leitores de primeira viagem de literatura clássica talvez se identifiquem com essa situação. Qualquer curioso mediano que, na adolescência, tenha tentado ler Shakespeare ou Camões, ou simplesmente um poema nas aulas de Literatura, foi sério candidato a esse tipo de frustração. Para alguns, entender a Teoria da Relatividade pode ser muito mais simples que o primeiro ato de “Romeu e Julieta“. Nas palavras de Adler (grifos meus):
“O enorme prazer que vem de ler Shakespeare, por exemplo, foi estragado para gerações de estudantes secundários que eram forçados a avançar em ‘Júlio César‘, ‘Como gostais‘ ou ‘Hamlet‘ cena a cena, decifrando todas as palavras estranhas num glossário e estudando todas as notas acadêmicas de rodapé. O resultado disso é que eles nunca leram de fato uma peça de Shakespeare. Quando eles chegavam ao final, já tinham esquecido o início e já tinham perdido a visão de conjunto. Em vez de serem forçados a adotar essa abordagem pedante, eles deveriam ser encorajados a ler a peça de uma vez só e discutir o que tivessem assimilado desta primeira e rápida leitura. Só então eles estariam prontos para estudar a peça cuidadosamente, porque já teriam entendido o suficiente sobre ela para aprenderem mais.”
Com a experiência de quem tentou ler Shakespeare com dicionário do lado aos 12 anos, posso dizer que esse é ótimo conselho. Leia sem se angustiar pelos pontos obscuros, pelas notas de rodapé herméticas, pelos neologismos mal-explicados e as referências exóticas. Essa primeira leitura, aqui chamada de “superficial” no sentido positivo, serve para nos familiarizar com a obra em todos os seus aspectos: idéias centrais, estilo, vocabulário etc. Ela vai identificar os pontos mais ou menos difíceis, vai nos sinalizar para o tipo de ajuda de que talvez possamos precisar, vai nos preparar, enfim, para a segunda leitura e o alargamento de nossa compreensão — o benefício mais duradouro de boa leitura.
Pode ser que tenham nos ensinado justamente o contrário. Muitos pais e instrutores bem intencionados ensinam as crianças e jovens a procurar no dicionário qualquer termo obscuro, ou pesquisar sobre algum tema desconhecido que surja no texto. Isso não está errado, mas deve ser feito no momento certo, sem interromper a leitura inicial. Especialmente porque, especialmente no caso de crianças, a preocupação com esses detalhes e a angústia daí gerada pode fazer com que a leitura se torne atividade penosa demais