domingo, 26 de junho de 2016

Para começar a entender a Bíblia...



A  Memória  Como Experiência De Deus No Antigo Testamento:  Pentateuco  e Livros Históricos

1.      INTRODUÇÃO
Já dizia São Jerônimo que conhecer as Escrituras é conhecer Cristo, e que ignorá-las, é, também, ignorar ao Senhor.
Nesse sentido, pretendemos fazer um percurso introdutório ao Antigo Testamento, com o corte de pesquisa para os temas que nos parecem ser os mais necessários de serem recordados nos dias de hoje, em que a multiplicidade de doutrinas tendem a obscurecer o único Evangelho de Jesus Cristo pregado pelos Apóstolos.
Com tal objetivo, vamos recordar o que é a Bíblia e em que contexto cultural ela nasceu. Estaremos dando por suposto que o leitor tenha clareza de que a Revelação de Deus se dá pela Tradição e pela Escritura, autenticamente interpretadas pelo Magistério.
Depois, vamos precisar o significado de alguns termos centrais na teologia bíblica e que, justamente por isso, o serão também em todo o desenvolvimento teológico. Contudo, tal precisão conceitual será realizada em uma leitura transpessoal dos próprios conceitos, com o objetivo de mergulhar o leitor na experiência do mistério de Deus que se deixa contemplar ali.
A pretensão desse pequeno artigo não é a de falar nada novo, pois o autor entende que sua missão teológica é comunicar aquilo que foi recebido no seio da Tradição da Igreja. Mas, de provocar um Novo na vida de quem tem contato com essa pequena obra. Isto é, a partir das indicações e provocações aqui redigidas, que o leitor se deixe alcançar pela graça e pela verdade, que as busque em sua vida e que, as tendo encontrado, seja um comunicador das misericórdias do Senhor, como o fez Maria, a Virgem, Esposa e Mãe.

2.  PROCESSO DE FORMAÇÃO CANÔNICA DO CORPO BÍBLICO: FOCO NO ANTIGO TESTAMENTO
O conteúdo do que hoje chamamos de Bíblia surge com a história do povo de Israel. Esse povo cria uma literatura vasta em gêneros, na qual pretende registrar suas reflexões, sua sabedoria, história e oração. Entretanto, o fundamento do ato produtivo de escrever não é a mera necessidade de registro, mas, antes, o fato de que o Deus único caminha com o esse povo, que o elegeu como propriedade sua e que com ele tece os rumos da história.
Em nível de contextualização, o povo que chamamos de “Povo de Deus” era, inicialmente, um grupo de migrantes da Mesopotâmia (Iraque, atualmente) e que eram chamados de hebreus. A origem comum desse povo é a figura de Abraão, homem chamado por Deus a deixar a cidade de Harã e tomar posse da promessa de Deus, Canaã (Gn 12, 1ss), em torno do ano 1850 a.C.
A palavra Bíblia significa “Livrinhos”, pois deriva do grego biblion,  que é a palavra “livro” no diminutivo.  O termo “Bíblia” não era usado no mundo judaico, sendo uma característica do Cristianismo Católico, uma vez que foi usado pela primeira vez por São João Crisóstomo, no quarto século depois de Cristo.
Quando falamos da Bíblia Cristã, estamos falando de um conjunto de 73 livros divididos em duas partes: Antigo Testamento e Novo Testamento. O vocábulo “Testamento” vem da tradução grega da palavra hebraica Berit, que quer dizer “aliança”, “pacto”. Uma observação importante é que esse conceito será central em todo o desenvolvimento da Revelação de Deus, tanto que o conjunto dos livros sagrados são divididos em duas narrações interligadas, a Antiga Aliança e a Nova. Ambas celebradas por iniciativa de Deus e tendo a sua fidelidade mesmo como suporte; ambas celebradas com sangue, símbolo da vida, no qual somos imersos na vida de Deus.
Os livros bíblicos são, então, re-divididos de acordo com sua temática e estilo. Assim temos:


Livros do Antigo Testamento (46 Livros)
PENTATEUCO (5)
- Gênesis
- Êxodo
- Levítico
- Números
- Deuteronômio
HISTÓRICOS (16)
- Josué
- Juízes
- Rute
- I Samuel
- II Samuel
- I Reis
- II Reis
- I Crônicas
- IICrônicas
- Esdras
- Neemias
- Tobias
- Judite
- Ester
- I Macabeus
- II Macabeus
POÉTICOS E SAPIENCIAIS (7)
- Jó
- Salmos
- Provérbios
- Eclesiastes
- Cântico dos Cânticos
- Sabidoria
- Eclesiástico
PROFETAS  MAIORES (6)
- Isaías
- Jeremias
- Lamentações
- Baruc
- Ezequiel
- Daniel
PROFETAS  MENORES (12)
- Oséias
- Joel
- Amós
- Abdias
- Jonas
- Miquéias
- Naum
- Habacuc
- Sofonias
- Ageu
- Zacarias
- Malaquias
Livros do Novo Testamento (27 Livros)
EVANGELHOS (4)
- Evangelho segundo São Mateus
- Evangelho segundo São Marcos
- Evangelho segundo São Lucas
- Evangelho segundo São João
- Atos dos Apóstolos
EPÍSTOLAS DE SÃO PAULO (13)
- Romanos
- I Coríntios
- II Coríntios
- Gálatas
- Efésios
- Filipenses
- Colossenses
- I Tessalonicenses
- II Tessalonicenses
- I Timóteo
- II Timóteo
- A Tito
- A Filemon
- Hebreus
EPÍSTOLAS CATÓLICAS
- Epístola de São Tiago
- Epístola I de São Pedro
- Epístola II de São Pedro
- Epístola I de São João
- Epístola II de São João
- Epístola III de São João
- Epístola de São Judas
- Apocalipse




Os protestantes não consideram livros bíblicos os seguintes livros: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus (e partes de Ester e Daniel). Desse modo o Antigo Testamento dos protestantes tem apenas 39 livros, invés dos 46 da bíblia católica. O Novo Testamento é idêntico para as duas confissões, sendo composto por 27 livros.
Os 7 livros mencionados acima foram escritos em grego (como os livros inspirados do Novo Testamento), enquanto que todos os outros livros do Antigo Testamento foram escritos em hebraico. Por isso, embora sendo livros antigos, os judeus não os incluíram na lista (cânon) de livros que consideram como Sagrada Escritura. Essa decisão dos judeus foi tomada por volta do ano 100 depois de Cristo, no Concílio de Jamnia[1]. Os cristãos, ao invés disso, acolheram esses 7 livros dentro da sua lista de livros inspirados por Deus.
No tempo da Reforma, protagonizado por Lutero, no século XVI, os protestantes decidiram adotar o Antigo Testamento segundo os parâmetros dos judeus e, portanto, excluíram os 7 livros, embora Lutero ainda os tenha colocado na sua Bíblia, mesmo sublinhando que não tinham a mesma importância dos outros livros, em um apêndice ao Antigo Testamento. Contudo, destaca-se aqui a incoerência para o discernimento: ora, os judeus usaram a regra em Jamnia para invalidar os textos cristãos, e é esse critério mesmo que Lutero vai usar para estabelecer a sacralidade dos textos fundamentais da sua proposta bíblica.
Acontece que desde os séculos III e II a.C., em Alexandria do Egito, havia uma próspera colônia judaica, que vivendo em terra estrangeira e falando a língua comum (grego), contava  entre seus escritos  os supracitados livros que não se encaixavam nos critérios de Jamnia. Ou seja, os livros deuterocanônicos desprezados por Jamnia, eram acolhidos nas bíblias judaicas fora da Palestina, chamadas de versão dos LXX.
É interessante notar que os Apóstolos e os Evangelistas, ao escreverem o Novo Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento na versão de Alexandria, mesmo quando essa divergia do texto hebraico, como podemos observar em Mt 1,23 que faz referência ao texto grego de Is 7,14; ou ainda Hb 10,5, que faz referência ao Sl 39/40, 7. Foi o texto que se tornou o comum entre os cristãos dos primeiros séculos. Isso fica evidente no próprio texto sagrado do Novo Testamento em que encontramos cerca de 350 citações do Antigo Testamento, das quais 300 são da versão dos LXX.
Ao falarmos, aqui, de canonicidade, não estamos tratando de uma escolha arbitrária dos textos que fossem convenientes aos interesses de sua época, mas da reflexão séria e profunda sobre a verdade da inspiração divina em determinados textos. Ou seja, daquela iluminação da graça que o Espírito Santo cumulou a mente de determinados homens (hagiógrafos) para que pudessem, com os dados de sua cultura religiosa e de seu tempo histórico, transmitir o pensamento de Deus. Com essa correta contemplação do hagiógrafo, percebemos que o texto bíblico é um texto divno-humano,  isto é, todo de iniciativa e obra de Deus e todo do homem.
Ora, isso nos faz perceber também que a finalidade do texto bíblico é religiosa; é a visão religiosa do coração do homem sobre os fatos que vão se sucedendo em sua vida e através da qual se revela ao homem o plano salvífico de Deus para a história universal.

3.      PANORAMA HISTÓRICO DA CONSTITUIÇÃO DO POVO DE ISRAEL
            A história de Israel como povo remonta ao ano de 1850 a. C., com Abraão. Este estabelece sua vida em Canaã e ali cria sua família como fruto das promessas que Deus lhe fizera. (Gn 22, 17). É a Abraão e a seus descendentes, Isaac (Israel) e Jacó, a quem chamamos de Patriarcas, isto é, fundadores do povo de Israel.
            Com o passar dos anos, Canaã foi atormentada por uma grave seca e a vida se tornou muito difícil na região, o que levou Jacó e seus filhos tomarem como decisão mudar-se para a região do Egito, que, na época, apresentava terras mais férteis e com maior possibilidade de construção de vida. Essa partida para o Egito era parte do projeto salvífico de Deus que, em sua providência, tirou da maldade dos filhos de Jacó a salvação de toda sua família, pois por inveja, os filhos de Jacó haviam vendido seu irmão mais novo, José, como escravo para comerciantes egípcios. E será graças a presença de José no Egito que a família de Jacó encontrará acolhida e oportunidade para crescer e se multiplicar.
            Com a morte de José e com o aumento expressivo de hebreus, os faraós temem a força que esse povo pode vir a ter e o escraviza sob dura opressão. Dentro deste contexto, Deus intervém fazendo surgir a figura de Moisés, que será enviado ao Faraó para providenciar a libertação do povo  Hebreu e para reconduzir esse povo para a terra que Deus lhe prometera em Abraão.
            Contudo, esse processo de libertação foi um processo difícil e longo, tanto quanto a dureza do coração do faraó quanto da parte do povo que se mantinha empedernido diante da Palavra de Deus que se dirigia a ele por meio de Moisés. Desde a páscoa, se passaram 40 anos até que o povo, tendo atravessado o deserto, pudesse, enfim, entrar na terra prometida.
            Com a morte de Moisés, quem assume a liderança do povo é Josué, o primeiro dos Juízes de Israel. Aos poucos, o povo vai tomando posse da região e vai se organizando em doze tribos, em memória dos doze filhos de Jacó. Esse esquema de organização se pauta na vontade que o povo tem de viver a fraternidade na liberdade garantida pela Lei que Deus foi plantando no coração desse mesmo povo ao longo da jornada no deserto (Ex 20,1- 21).
            Inspirado na experiência política circunvizinha, após diversos ataques de outros povos, o povo de Israel, em torno do ano 1030 a.C., sob o governo do Juiz Samuel, vai desejar constituir-se em monarquia, isto é, ter o seu governo centrado na figura de um rei (ISm 8, 4ss). O primeiro a assumir o trono em Israel é Saul, sucedido por Davi, tido como o maior rei de Israel, e Salomão, em cujo reinado começaram a ser escritos os textos bíblicos.
Com a morte de Salomão em 931 aC., o reino é mergulhado em inúmeras tensões políticas e acaba sendo dividido em dois:
a. O Reino do Norte (Samaria), que não aceita o filho de Salomão como Rei. Este é o Reino que receberá o nome de Israel, sob o rei Jeroboão I.
b. O Reino do Sul (Jerusalém), que permanece fiel à família de Davi. Este reino receberá o nome de Judá, sob o rei Roboão.
Ciclos de Dominações
            Por ser uma região central entre a África e a Ásia, a porção de terra em que se estabelecia o povo de Israel era muito desejada pelas grandes potências da época, sendo submetida por diversos impérios.
            Esses processos de dominação são vitais para que possamos compreender a evolução teológica do conceito de revelação e do profetismo no corpo bíblico.
            Entre 724 e721 a.C. a Assíria invade o Reino do Norte (Israel) e toma posse daquela região, destruindo a Capital do reino, Samaria. Os sobreviventes são deportados para a Assíra. Termina, assim, o Reino do Norte.
            Em torno de 587 a.C., o império da Babilônia vence a Assíria e toma posse do Sul (Judá), levando boa parte da população de Judá para a capital do Império, onde permanecerá por 50 anos. Esse é o período que o corpo escriturístico vai chamar de Exílio.
            A Babilônia, por sua vez, será vencida pelo império Persa em 539 a.C.. Nessa ocasião, Ciro, o rei Persa, permite que os judeus voltem para sua terra. É aqui começa a reconstrução do Templo de Jerusalém. Contudo, o povo de Deus nunca mais teve liberdade política. Assim, Deus vai inspirando e revelando ao povo a promessa de um rei libertador, um Messias descendente de Davi que libertaria o povo de Deus da opressão.

4.      CONSTITUIÇÃO JUDAICA DO TEXTO SAGRADO
Para os judeus, o nosso Antigo Testamento, era designado com a palavra TANAKH, que é o acróstico de três letras, tav (ת) de Torah (lei), nun (נ) de Neviim (profetas),  e caf (כ) de Kethuvim (Escritos). A palavra Tanakh é derivado da junção dessas divisões. O Tanakh é a parte incontroversa da Bíblia, tanto para o Judaísmo quanto para o Cristianismo.
Assim formando a palavra: תנ״ך. TANAKH =  Toráh (תורה)+ Neviim (נביאים)+ Kethuvim (כתובים).
Ao todo, a Tanakh é composta de 39 livros divididos em suas três partes:
Torah
Torah (תורה) ou Torá, que significa Lei, é o nome da primeira parte, que é constituída pelos cinco primeiros livros da Bíblia, que são Gênesis (Bereshit), Êxodo (Shemot), Levítico (Vaicrá), Números (Bamidbar) e Deuteronômio (Devarim). Estes cinco primeiros livros da Bíblia, na verdade são um só livro, chamado “O Livro da Lei” (em hebraico, Sêfer Torá), ou simplesmente “A Lei” (Torá), ou “A Lei de Deus”, ou “A Lei de Javé”, ou “A Lei de Moisés”, ou Pentateuco (em hebraico, Chumash”).
Neviim
Neviim (נביאים), que significa Profetas, é o nome da segunda parte da Bíblia, que é constituída pelos livros de Josué (Iehoshúa), Juízes (Shofetim), 1 Samuel (Shemuel Álef), 2 Samuel (Shemuel Bet), 1 Reis (Melahim Álef), 2 Reis (Melahim Bet), Isaías (Ieshaiáhu), Jeremias (Irmiáhu), Ezequiel (Iehezkel), e “Os Doze” (Shenem Assar) – Oséias (Hoshêa), Joel (Iôel), Amós (Amós), Obadias (Ovadiá), Jonas (Ioná), Miquéias (Mihá), Naum (Nahum), Habacuque (Havacuc), Sofonias (Tsefaniá), Ageu (Hagai), Zacarias (Zehariá) e Malaquias (Malahi).

Kethuvim
Kethuvim (כתובים), que significa Escritos, é o nome da terceira parte da Bíblia, que é constituída pelos livros de Salmos (Tehilim), Provérbios (Mishlê), Jó (Jov), Cântico dos Cânticos (Shir Hashirim), Rute (Rut), Lamentações (Echá), Eclesiastes (Cohélet), Ester (Ester), Daniel (Daniel), Esdras (Ezrá), Neemias (Nehemiá), 1 Crônicas (Divrê HaYamim Álef), 2 Crônicas (Divrê HaYamim Bet). Estas escritas por David, Shelomô (Salomão), filhos de Corach, Mordechai, Daniel, Cronistas… Estes escritos abordam os mais diversos assuntos, referentes a historias do Povo Judeu, amores por Am Israel e ao Shabat, Sabedoria, louvores, Lamentações, crônica.

5.      O PENTATEUCO
Os nomes dos cinco primeiros livros que temos na versão cristã das Escrituras são de origem grega e devem-se a tradução alexandrina, também chamada dos LXX. Os nomes estão relacionados aos conteúdos dos livros, quase como que uma sinopse do conteúdo do livro. Assim temos:
1. Gênesis: o nome significa “origem”, porque esse livro começa falando da origem do mundo e do homem em Deus;
2. Êxodo: o nome significa “saída”, porque trata da saída dos judeus prisioneiros no Egito;
3. Levítico: o nome significa “dos sacerdotes levitas”, pois apresenta as leis para o culto de Deus;
4. Números: pois o livro começa pela história de um recenseamento feito por Moisés no deserto;
5. Deuteronômio: o nome significa “segunda lei”, pois o livro propõe uma nova apresentação da lei.

            O Pentateuco possui uma importância histórica, religiosa e moral única, de modo que nenhum outro documento a ele se compara. Sua proposta mais profunda não é a de contar como a origem do universo se deu ou de estipular uma ciência histórica, mas sim de mostrar o que e quem é a origem de tudo o que há e de como esse Deus que todo criou desejou realizar para si um povo com o qual se relaciona de modo singular.
             A Torah é o fundamento da vida e do pensamento da comunidade judaica, de sua concepção de Deus e do mundo, do homem e da natureza, da sua própria identidade e das leis que regem a relação do homem com Deus e com os outros homens. Suas palavras pretendem iluminar e dirigir a vida religiosa, moral e jurídica dos judeus. O cristianismo, como herdeiro das tradições judaicas, começa a sua teologia aqui.
            Contudo, a experiência cristã dos textos, não é a de voltar para trás como uma recordação da Lei, mas um “fazer memória” de como a Lei foi a preparação para que Jesus, a Palavra e a Lei, viesse redimir os homens e inscrever a Lei do Pai, com o poder do Espírito, no coração dos homens.
Em uma leitura ampla, podemos dizer que o Pentateuco possui cinco eixos temáticos:
1. Criação do mundo e do homem;
2. Libertação/ Salvação
3. Aliança;
4. Lei;
5. Promessas.
Os cinco pontos supracitados aparecem com freqüência, em tom de recordação nos profetas, de meditação nos históricos e de cumprimento no Novo Testamento. Percebe-se, daí, que a Torah não é apenas o inicio cronológico da narração bíblica, mas também seu inicio conceitual de reflexão teórica e salvífica, ou seja, seguindo o modo de revelar-se de Deus, manifesta-se com Palavras acompanhadas de atos que as Realizam, palavras e ações de Deus manifestas no tempo da história.
A estrutura do Texto do Pentateuco é mais ou menos a seguinte:
1. GÊNESIS: compreende duas partes: Gn 1 – 11 e 12 – 50. A primeira é chamada “pré-história bíblica”, porque apresenta acontecimentos anteriores à história bíblica, que começa no capítulo 12, com Abraão.
            - Deus fez o mundo e o homem muito bons;
            - o pecado perverteu a beleza original;
            - Deus separa um homem e a sua descendência para serem os     depositários da esperança de um Messias Salvador;
A segunda parte do Gênesis apresenta a história dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, mediante os quais Deus vai realizando o seu plano de salvação e se vai dando a conhecer aos homem.
2. ÊXODO: descreve a saída do Egito mediante as dez pragas e a celebração de Páscoa (1,1 – 15, 21); a caminhada até o monte Sinai (15,22 – 18, 27); a Aliança e a legislação do Sinai (19, 1 – 40,38).
3. LEVÍTICO: apresenta coleções de leis relativas ao culto (1,1 – 10,20) e à santidade do povo (11,1 – 27, 34).
4. NÚMEROS: apresenta leis mescladas com a narrativa da caminhada do povo no deserto até ás margens do Jordão (1,1 – 36, 13).
5. DEUTERONÔMIO: apresenta cinco sermões de Moisés que recapitulam a Lei (1,1 – 4,43; 4,44 – 11,32; 12,1 – 28,68; 28,69 – 30, 20; 31, 1-29) e a narração do fim da vida Moisés (31,30 – 34, 12).
No Pentateuco, vemos que, depois do pecado, Deus faz uma promessa de salvação ao homem: a libertação de todo o pecado e de suas conseqüências, a derrota do Maligno por um descendente de Mulher que lhe esmagará a cabeça. Para isso, na chegada do tempo oportuno, Deus mesmo põe em marcha o seu plano salvífico, constituindo um povo para si e instruindo-o, para dele fazer brotar Jesus Cristo Senhor.
A lei surge, neste contexto, como elemento que distingue Israel de todos os povos. Sua Lei não está pautada só na horizontalidade do outro, mas firma-se na verdade da verticalidade do Totalmente Outro que vem ao encontro do homem para salvá-lo do pecado. Assim, a Lei é uma educadora que prepara a humanidade para a acolhida da Lei derradeira, que será o Espírito Santo derramado no coração do homem.
Contudo, não se deve jamais interpretar a Lei como um legalismo externo e estéril. Antes, ela é um convite a um relacionamento intenso e existência com Deus. A Lei é dada aos homens no contexto da Aliança (berit), isto é, no contexto em que Deus toma a iniciativa de fidelidade, a assume e a eleva em uma extrema intimidade ao dizer  a fórmula matrimonial  como forma do pacto que realiza com seu Povo: “Eu serei o seu Deus; Tu serás o meu povo” (Ex 6,7). A relação em que a Lei é dada ao povo é uma relação esponsal, o que a configura como um dom de festividade, não como uma imposição opressora, é mais dom que dever.
Ainda nessa linha de interpretação, vemos que a Lei é uma pedagoga, na medida em que seus ordenamentos visam fazer com que o homem possa assumir uma vida mais humana, mais aberta a Deus e ao outro, menos fechada em si mesmo e menos vítima das imposições instintivas pervertidas pelo pecado original. Seguir a Lei é trilhar um caminho de vida e para vida plena e feliz, não só em uma visão escatológica, mas já aqui e agora.
Prova disso é a própria estrutura do decálogo que antes de todas as ordenanças, exige que o crente entre em relação com o Deus de Israel[2] (Ex 20,2; Dt 5, 1-6) que atuou no passada para sua salvação e que “é rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6). Essa verdade é tão radical na existência do homem, que o povo de Israel vai proclamá-la de geração em geração como sendo a sua identidade: Shemá!!!(Dt. 6, 4-9)

6.      FÉ COMO MEMÓRIA, VIDA COMO HISTÓRIA
O segundo grupo de livros do Antigo Testamento Cristão é o chamado “Históricos”.  Aqui, cabe fazer uma ressalva de significado. O termo história, entendido como ciência, é um elemento próprio do período moderno. Na antiguidade, quando se falava de “contar a história”, não se pensava em rigor científico de descrição dos fatos com imparcialidade, mas em uma característica de contar os fatos de modo artístico para que estes ficassem gravados na memória e fossem conhecidos de todos.
Os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1e 2 Reis foram escritos pela mesma escola de escribas que produziram o Deuteronômio, assim, percebemos como na narrativa desses livros o tema da Lei e da fidelidade a ela é contemplado de modo muito concreto nas decisões dos personagens e de como essas decisões os aproximam de Deus e da felicidade quando seguem a direção da Torah, ou os encerram em tristeza e amargura pelo afastamento da Lei e, conseqüentemente, de Deus.
Uma outra característica desse grupo textual é a compreensão da missão do homem de Deus em meio a vida política e social de Israel. Nesse período, o povo é convidado a deixar-se dirigir em todas as esferas de sua vida pública pela Palavra de Deus transmitida pelos profetas. Nesse sentido, surge a figura do “rei segundo o coração de Deus” (Davi) que deve administrar a Terra prometida por Deus para o bem de todos (Dt 15,4-11). Essa terra é expressão da Aliança de Deus com seu povo, se o povo a perde e é conduzido ao exílio, é justamente por conta de ser infiel à aliança celebrada com Deus.
Os livros históricos nos relembram que Deus faz o caminho da vida com o seu povo, que nada lhe é estranho, mas que Ele mesmo se interessa por cada um dos detalhes da vida pessoal e comunitária dos seus. Assim, olhar para trás é ver o que Deus realizou em sua fidelidade, certos de que Ele não muda e que, se operou ontem por amor aos seus, hoje fará o mesmo por amor a nós.
Na fé de Israel, o conceito de memória é algo único e de extrema importância na vida do crente. Contudo, não estamos falando de memória no sentido de registro mental de fatos, mas sim de aprender, sempre mais e de novo, a recordar, em uma atitude de fé, para discernir o mistério da presença de Deus que se esconde nas circunstancias da história e da própria vida do crente.
O homem nasceu para recordar. É na faculdade da memória que as experiências da pessoa vão sendo entendidas e integradas a fim de enriquecer e revelar, progressivamente, a identidade do sujeito, sempre mais convidada pela existência a desenvolver-se no tempo. É um atributo próprio da memória conservar a perfeição que vai sendo adquirida e conquistada com o tempo.
Assim, nos livros históricos contemplamos como a memória é a faculdade decisiva para realizar a viagem da vida, a viagem que conduz a Deus. Como Deus mesmo vai constituindo a história como mestra da pessoa e como a história pessoal vai se tornando morada do mistério.
O crente, ao fazer memória, constrói o seu passado, entendendo o seu significado profundo e radical, interpretando-o  e reinterpretando-o de modo criativo e coerente; sem leituras superficiais e sem sofrimentos estéreis ou resignações passivas, mas carregando-o de sentido e de conexões significativas internas, que vão confirmando e enriquecendo o sentido geral da vida.
Ao professar a fé no Deus de Israel, o sujeito individua o significado da sua vida e morte. Ao fazer memória, consegue entender o significado de cada acontecimento ou descobrir em cada acontecimento a sua lógica existencial; é ter encontrado o cordão que liga e mantém unidos todos as fragmentos do viver, tais como as contas de um Rosário, e cuja ponta está na mão do Deus Fiel. Desse modo, o israelita piedoso acredita recordando a ação de Deus na história de Israel e recorda acreditando na fidelidade de Deus que não muda. É essa memória que Moisés recomendou inúmeras vezes que o povo não perdesse, que está na base do Shemá e da Páscoa, isto é, uma memória que não se volta para o passado de modo exclusivo, mas se projeta rumo ao futuro, pois a memória não é apenas crônica de eventos que se foram, mas um acontecimento na história da salvação que produz efeitos redentores aqui e agora, renovando, em cada hoje da história, seu significado e eficácia.

7.      CONCLUSÃO
A Sagrada Escritura demorou quase dois milênios para chegar a sua atual configuração, tanto textual quanto canônica. Ela recebeu diversos autores, revisores e camadas redacionais nos textos que foram declarados inspirados, o que levou em conta o fato de que Deus se utiliza desses contingências no tecer de sua providência.
Desse modo, a história de Israel foi sendo compilada e significada pela mão de Deus que, tal qual pastor, foi conduzindo seu povo ao conhecimento de si mesmo e do Deus Fiel da Aliança que ia estabelecendo sua morada no meio deles por intermédio dos diversos acontecimentos, em uma pedagogia profunda e paciente.
Ao contemplar, dentro deste contexto, os livros do Pentateuco e os Livros que compõe o bloco “Históricos”, percebemos que dentro dessa imensa diversidade de pessoas e de anos, o Espírito Santo foi zeloso em conservar a unidade de toda a Escritura em seu projeto salvador, que é dar a conhecer Jesus, o Cristo, que nos leva à comunhão com o Pai, no Espírito.
Desde o começo do texto Sagrado, vamos vendo como paulatinamente os conceitos centrais do cristianismo vão sendo cunhados e vão recebendo significados que brotam mais da vida que de elucubrações, mais da história vivida que da mesa do escriba, mais do coração de Deus que da capacidade imaginativa do homem.
Assim, o conhecimento teórico e espiritual desses textos não é apenas um novo dado ao conjuntos de dados culturais que temos, ou apenas um conhecimento ético normativo antigo. Antes, é a percepção da fidelidade de Deus que se inclina para se dar a conhecer e, nesse conhecimento de amor, nos salvar.










8.      BIBLIOGRAFIA

ANTONIAZZI, Alberto. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982.
Um livreto introdutória ao mundo bíblico, com linguagem muito acessível, porém um pouco refém da teologia dominante da época (Libertação), mas que serve de vademecum.
BAZAGLIA, Paulo.  Primeiros Passos com a Bíblia. São Paulo: Paulus, 2001.
Excelente introdução histórica ao mundo bíblico, com linguagem acessível e um embasamento teológico sadia, apesar de muito simples.
BETTENCOURT, Estevão. Curso Bíblico: Mater Ecclesiae. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
Um manual preciosíssimo para todos os que desejam estudar a Sagrada Escritura com profundidade e de acordo com o método histórico-crítico proposto pelo Magistério recente.
CENCINI, Amedeo.  A árvore da vida: proposta e modelo de formação inicial e permanente. São Paulo: Paulinas, 2007.
CNBB. Bíblia Sagrada. São Paulo: Canção Nova, 2013.
Uma preciosidade para os brasileiros, quer pela tradução acurada, quer pelas notas, mapas e referências. Além disso, apresenta o texto da “Dei Verbum” na íntegra e excelentes introduções aos blocos de livros e a cada livro em particular.
FLORES, José H. Prado. História da Salvação. São Paulo: Loyola, 2000. (Col. Kerygma; 10)
Um bom apanhado história da Salvação feito em leitura transpessoal, o que conduz o crente a um posicionamento existencial ante o mistério da Salvação em si  mesmo e de sua salvação pessoal em Cristo.
LÓPEZ, Féliz Garcia. Trad. Alceu Luiz Orso. O Pentateuco: introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004. (col. Introdução ao Estudo da bíblia; 3a)
Coleção excepcional para interiorização do estudo bíblico, com uma linguagem técnica teológica e profundamente aberta para a discussão de diversas escolas hermenêuticas.



[1] O Concílio de Jamnia teria sido proposto com a finalidade de dar um rumo para oJudaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., e o advento da propagação da seita de Jesus Nazareno, cujos textos de seus célebres seguidores já estavam se popularizando como Escrituras Sagradas. Assim, nesse concílio regional, os participantes teriam decidido, sob pretexto de desabonar as letras cristãs, considerar como textos canônicos do Judaísmo apenas aqueles cujos originais tivessem sido compostos em língua hebraica, dentro dos limites da Terra Santa e que, no mínimo, remontassem ao tempo do profeta Esdras. Tais critérios canônicos, portanto, invalidavam para esse grupo não apenas os textos cristãos venerados pelas comunidades cristãs – visto que não eram, evidentemente, contemporâneos a Esdras, nem tinham sido compostos em hebraico, sendo que alguns foram elaborados fora das muralhas de Jerusalém. Apesar de a crítica moderna afirmar que vários livros que constam no cânon hebraico são posteriores ao tempo de Esdras (como é o caso do Livro de Daniel, Crônicas, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes), os estudiosos explicam que os fariseus não dispunham do método científico que existe hoje para datar uma obra, ou mesmo para atribuir-lhe autoria.
[2] Cf. Bento XVI. Deus Caritas est. N° 1.