domingo, 20 de março de 2016

O que significa Hosana?


Hosana era uma suplica hebraica de auxílio[1], mas que expressa uma convicção da ação divina em favor do suplicante: “Agora, Senhor, Nosso Deus, salva-nos de sua mão para que saibam todos os reinos do mundo que somente tu, Senhor, és Deus!” (2Rs 19,19). Originalmente, Hosana significava “socorro”, como um apelo, mas posteriormente converteu-se em brado, pela absoluta certeza de que o Senhor de Israel não é insensível ao clamor do seu povo e que, por ser o Deus fiel, intervirá ao ser invocado.
            Na liturgia da Igreja Católica, a saudação Hosana é assumida para exaltar a realeza de Cristo Senhor Salvador presente no meio de seu povo.
            Na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, o povo retoma o Salmo 118, 25 em que temos o a forma imperativa longa (hoshi‘ana): Salva-nos, agora, te pedimos, ó SENHOR; ó SENHOR, te pedimos, prospera-nos. Esta citação é importante para entender o contexto em que era usado este termo. Jesus entra em Jerusalém como Messias Salvador, como Rei e Senhor do coração dos homens, inaugurando, em sua carne, um povo santo para o Pai, no Espírito!


[1] 2Rs 6,26

sábado, 19 de março de 2016

O Jogo da Imitação (Resenha)


            Pedro Paulo Rodrigues Santos

Qual o impacto que nossas decisões podem ter na vida das pessoas ao nosso redor? As escolhas corriqueiras que fazemos ao orientar nossos dias podem afetar a humanidade? Ou melhor, nossa personalidade tem algo a acrescentar ao tecido que chamamos “história”?
          Questões como essas saltavam intuitivamente em minha mente enquanto assistia ao longa O jogo da imitação ( The imitation Game, no original).
            O filme é ambientado no Reino Unido e se passa no contexto da Segunda Grande Guerra. Contudo, essa não é uma produção sobre guerra, mas sobre a vida e, nesse caso, a vida de Alan Turing, matemático, cientista da computação e criptologista da primeira metade do século XX.
            O roteiro dessa cinebiografia apresenta uma progressão de eventos muito peculiar, como uma retrospectiva de alguém meditando sobre a vida. O filme acontece em três períodos: na juventude de Turing, no seu trabalho durante a guerra e pouco antes de seu suicídio, em 1954. Nas tramas das idas e vindas da história, somos inseridos na paulatina formação da personalidade e do personagem que Alan Turing será na década de 40, momento em que, silenciosamente, ele se torna uma peça central e invisível no combate dos Aliados aos Nazistas.
            No coração da trama, temos que durante a Segunda Guerra Mundial, o governo britânico monta uma equipe de intelectuais de elite com o objetivo quebrar Enigma, uma poderosa máquina desenvolvida pela comissão de tecnologia dos nazistas a fim de codificar mensagens que só poderiam ser entendidas por quem possuísse o código chave. Na época, acreditava-se que o sistema de codificação era impossível de ser quebrado.
            Alan Turing (Benedict Cumberbatch), então com 27 anos, será aceito nesse seleto grupo de intelectuais. Entretanto, divergindo de seus companheiros e das autoridades, Alan convence-se de que seria humanamente impossível realizar a decodificação de Enigma, uma vez que ela geraria milhões de possibilidades a serem testadas no espaço de apenas 18 horas, antes de sua reconfiguração diária. Desse modo, o jovem matemático idealiza uma maquina que pudesse combater a tecnologia nazista, desenvolvendo, assim, o que posteriormente seria chamado de “máquina de Turing” e que antecederia aos computadores que temos hoje em dia.
            A máquina desenvolvida por Alan consegue quebrar os códigos de Enigma, o que, segundo os historiadores, teria encurtado a guerra em, pelo menos, dois anos, além de servir de material teórico para o desenvolvimento da computação contemporânea.
            À medida que fluxo de informações do filme vai seguindo seu rumo, algumas realidades humanas são colocadas em xeque, como o papel social da mulher e sua capacidade de atuar no mundo em pé de igualdade com os homens, superando-os em certos aspectos. Essa temática é inserida pela personagem Joan Clarke (Keira Knightley), matemática inglesa e única mulher pertencente ao grupo de elite criado pela inteligência britânica. Isso é contraposto por um conservadorismo estéril e opressor, fundado em um falso moralismo que apenas sufoca a genialidade do que é diferente.
            Talvez essa seja a grande discussão filosófica por detrás dos conflitos existências que o filme apresenta. A diferença é vista, em vários momentos da trama, como algo negativo, não normal.
            Em uma cena linda, na casa de Turing, Joan questiona o que seja a normalidade e afirma que não foi a normalidade que triunfou na guerra, mas a singularidade de um homem brilhante intelectualmente e que tem uma infinidade de defeitos, quase que caracterizando e re-propondo a figura do herói, não o modelo perfeito e sem defeito, mas o que realiza o bem pelo desejo do bem.
            A homossexualidade de Turing é apresentada na trama como sua anormalidade e, por isso, crime que o levará a humilhação e ao esquecimento por mais de 50 anos. Contudo, o longa de 2014 reforça a idéia de que normalidade não passa de “estar de acordo com as normas vigentes” e que não há nada mais insano que esperar de um fluxo normativo algo novo. É por causa de cada uma das singularidades de Alan Turing que essa resenha está sendo redigida em um computador e que estará disponível na internet. Podemos fazer muitos elogios ao conceito de “normal”, entretanto, devemos nos recordar que para os nazistas, era “normal” o que eles defendiam, estava nas normas. É muita pretensão humana tentar reduzir à uma normalidade, isto é, à normas paradigmáticas a condição humana que, em sua natureza, é singularidade e alteridade.
           O Jogo da Imitação revela o quanto cada vida humana é singular e como é essa singularidade assumida e decida em ser quem é que faz com que os trilhos da história jamais parem, ainda que nossos nomes não sejam os mais famosos. Essa imagem é plástica na fotografia em tons frios presente em  todo o filme e na celebração bela e sutil que o encerra, mostrando que, no fim, as pessoas  de quem menos esperamos são as que fazem as magníficas coisas que jamais poderíamos imaginar.



Título: O Jogo da Imitação
direção: Morten Tyldum;
roteiro: Graham Moore (baseado no livro Alan Turing: the enigma, de Andrew Hodges);
elenco: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode, Allen Leech, Matthew Beard, Mark Strong, Charles Dance, Rory Kinnear
ano: 2014; duração: 114 minutos; país: Estados Unidos, Reino Unido;
gênero: drama Crítica: oito indicações ao Oscar 2015.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Escolhas


Um grande místico estava morrendo. Ele chamou seu principal discípulo. O discípulo ficou muito feliz ao ver que seu mestre o chamava, pois ele havia sido escolhido entre uma multidão de pessoas. Provavelmente o mestre iria transmitir algum grande segredo que não havia contado para ninguém até agora. “Esta é a forma pela qual ele está me escolhendo como seu sucessor!”, pensou o discípulo, enquanto se aproximava.
O místico disse: “Tenho apenas uma coisa a lhe dizer. Eu não fui capaz de ouvir meu mestre, que me disse esta mesma coisa ao morrer. Eu era tolo e não ouvi, nem mesmo pude entender o que ele queria dizer. Mas estou lhe falando, com toda minha experiência, que ele está certo, apesar de eu ter achado absurdo quando ele me contou.”
O discípulo perguntou: “O que é? Por favor, me conte! Tentarei seguir cada uma de suas palavras”.
O mestre então disse: “É algo muito simples: nunca, em momento algum de sua vida, tenha um gato em sua casa!” E antes que o discípulo pudesse perguntar por que, o mestre morreu!
Agora ele se sentia desorientado — que frase idiota! E a quem ele iria perguntar o que aquilo queria dizer? Foi procurar as pessoas mais velhas do vilarejo. “Há algum sentido nessa mensagem? Deve haver algum sentido misterioso oculto aqui!” Um dos anciãos falou: “Sim, eu sei por que o mestre de seu mestre disse o mesmo para ele: ‘Nunca, jamais, tenha um gato em sua casa’. Mas ele não ouviu. Eu sei toda a história”.
O discípulo pediu que o ancião lhe contasse tudo para que ele pudesse entender o significado do que o mestre lhe dissera. O ancião riu. Disse: “É algo muito simples, não há nada de absurdo aí. O mestre de seu mestre deixou para ele uma grande mensagem, mas seu mestre nunca se perguntou: ‘Qual o sentido disso?’ Ao menos você foi inteligente o bastante para indagar a respeito.
Seu mestre era jovem quando essa mensagem lhe foi transmitida. Ele costumava viver na floresta e possuía apenas duas roupas, nada mais. E o pior é que freqüentemente suas roupas eram destruídas pelos ratos que entravam em sua casa, e ele era obrigado a pedir novas peças às pessoas do vilarejo.
Um dia, um habitante do vilarejo disse: ‘Por que você não tem um gato? Se você tiver um gato, ele comerá os ratos e não haverá problemas. Do contrário, como nós, que somos pessoas pobres, faremos para lhe dar roupas novas todos os meses?’ Parecia bastante lógico, então ele pediu que alguém lhe desse um gato. Levou o gato para casa, mas aí começaram os problemas. O gato obviamente salvou as roupas, mas o gato precisava de leite, porque depois que ele comeu os ratos não havia mais o que comer.
E o pobre homem não podia meditar, porque o gato estava sempre miando e gemendo e dando voltas a seu redor.Ele retornou ao vilarejo e falou com algumas pessoas, que lhe disseram: ‘Esta é uma situação difícil. Agora teremos que lhe fornecer leite diariamente. Em vez disso, podemos lhe dar uma vaca. Assim a situação estará resolvida, você fica com a vaca. Você pode beber o leite e seu gato também. Assim você também não precisará mais nos pedir comida diariamente.
A idéia parecia ótima. Ele levou a vaca… e o mundo começou. É assim que o mundo começa. A vaca precisa de grama, e as pessoas disseram: ‘No próximo feriado, nós limparemos uma área na floresta e prepararemos a terra. Você irá plantar um pouco de trigo e algumas outras coisas, e deixará uma parte para a grama.’ E os habitantes do vilarejo fizeram o que haviam prometido: limparam a floresta, araram o solo, plantaram trigo. Mas agora havia outro problema: era necessário irrigar a terra, cuidar da plantação. E o pobre homem gastava todo o seu dia com isso. Não havia mais tempo para ler as escrituras, nem para meditar.
Mais uma vez ele retornou ao vilarejo e disse: ‘Meus problemas só estão piorando! Agora o problema é que não há mais tempo para meditar!’
Eles responderam: ‘Espere um pouco. Uma mulher acaba de ficar viúva, ela é jovem e temos medo que ela seja uma tentação para os jovens de nosso vilarejo. Por favor, leve-a com você. Ela é saudável, pode tomar conta de sua terra, dá vaca, do gato, e irá preparar sua comida. Ela também é muito religiosa. E não se preocupe, ela não irá perturbá-lo.”
Assim as coisas se encaminharam para sua conclusão lógica. Veja o quanto o homem já havia se afastado de seu caminho desde que recebera o gato...
A mulher foi morar com ele e cuidar dele. Durante alguns dias, ele se sentiu muito feliz. Ela massageava seus pés e... aos poucos o que tinha que acontecer aconteceu: eles se casaram. E quando você se casa, na índia, tem ao menos uns doze filhos. No mínimo! Então toda a meditação se foi.
Ele se lembrou disso apenas quando estava morrendo. Lembrou-se outra vez que, quando seu mestre estava morrendo, havia dito a ele para tomar cuidado com os gatos. Foi por isso que ele lhe disse isso. “Agora é sua vez de tomar cuidado com os gatos. Basta um pequeno passo na direção errada e você estará seguindo o caminho errado. (Osho)
A vida é assim: toda escolha que fazemos, a menor delas, geram ondas e ondas de repercussão por toda a nossa existência. Viver é exercer a liberdade, é fazer-se em cada escolha que realizamos, é existir, ou seja, lançar-se no projeto “Eu”.
Muitas vezes, nos iludimos que nossos atos são isolados, mas cada escolha revela a infinidade possível da vida humana. Cada sim que damos encerra uma infinidade de nãos que estamos afirmando com nosso sim. Desse modo entendo a angustia sartreana de ser um escravo da liberdade.

Escolher implica sempre um drama em primeira pessoa. Toda escolha é irrevogável, é uma sentença eterna, porque o tempo não volta e a vida não para. Não é possível, absolutamente, recomeçar. Estamos sempre caminhando para frente. Essa percepção gera um certo terror e uma forte pressão pelo peso que cada uma das nossas escolhas encerra: somos os únicos responsáveis pela felicidade e sucesso de nossas vidas!

sábado, 12 de março de 2016

A fé cristã como Revolução: Estar em face do Rosto, revolução da liberdade


Ao longo da história, a humanidade assistiu, na primeira fila, o desenrolar de diversas “produções” que tinham como título um conceito novo que visava corresponder às exigências do coração de cada homem: revolução. Desse modo, assistiu-se a revolução do homem contra a ordem estabelecida pelo Criador; a revolução contra o domínio de imperadores, reis e papas; a revolução do proletariado; a revolução científica; a revolução feminista; a revolução liberalista; a revolução sexual; a revolução gay...
Todas as revoluções tinham como proposta inicial e motivadora o resgate da humanidade do homem, a sua liberdade e satisfação, o seu progresso e bem-estar. Entretanto, todas as vezes que se iniciou esse projeto de conquista de “direitos e valores” partindo-se de um Eu concreto, detentor de certa autoridade sobre um determinado grupo   que se põe a fazer pressão contra a sociedade para impor, de modo definitivo, suas “motivações” na vida social, esse mesmo processo gerou apenas violência, morte e afastamento da humanidade do homem, um progressivo esquecimento do que é ser homem de fato.
Ben-Hur experiencia essa verdade em sua história pessoal, é personagem paradigmático dessa realidade: quando a revolução é embasada em uma ipseidade, ela tende a reduzir toda e qualquer realidade, que é constitutivamente alteridade, a si mesmo pela violência e pela força.
Contudo, a autêntica revolução consiste em “ser capaz de responder” – responsabilidade – à realidade que se apresenta hostil e violenta com serena afirmação de si, de seus direitos e deveres. Esse movimento não é natural no homem, mas lhe é originário, uma vez que a responsabilidade é condição para que exista verdadeira relação e que o homem foi constituído à “imagem e semelhança” de um Deus que, em si mesmo, é relação de amor (Gn 1,26).
Sim, esse movimento não-natural no homem, mas que lhe é original, lhe é devolvido quando esse “homem-eu” é colocado ante a face do “outro-tu” e o reconhece como um próximo, um irmão. Esse movimento existencial é como que a engrenagem interna da ética-relacional da fé cristã, que tem sua origem na Pessoa de Jesus Cristo, o primeiro a viver essa realidade em plenitude e a fazer da humanidade partícipe dessa plenitude que Ele alcançou para os homens de todos os tempos, devolvendo ao ser humano a sua verdadeira identidade ao revelar o homem ao próprio homem.
Esse movimento, sim, é revolucionário porque consiste em “re-escolher”, em “colocar a vontade de novo em” (re-volo) responder ao rosto que se põe ante a face do homem e lhe pede ajuda, mesmo quando incapaz de articular uma única palavra, porque esse mesmo rosto é sinal do Rosto no qual todos os homens e o homem todo pode contemplar-se e descobrir-se sempre mais necessitados de fazer-se dom, do mesmo modo como o fez Jesus, Rosto humano de Deus. Pôr-se ante o Rosto de Jesus é experienciar a mais autêntica revolução, a revolução pessoal, a conversão que projeta o homem para além de si, inclusive no espaço e no tempo.

Assim, não há como não recordar Francisco de Assis e Teresa de Calcutá que, tendo encontrado o Rosto de Jesus, foram transformados e influenciaram mudanças na vida das pessoas, da sociedade, da Igreja e do mundo inteiro como autênticos revolucionários que dão à humanidade o testemunho de que só contemplando o Rosto do Cristo que sobe ao Calvário é que se alcança, verdadeiramente, o resgate da humanidade do homem, a sua liberdade e satisfação, o seu progresso e bem-estar. Desse modo entende-se que o cristianismo é, historicamente, revolucionário, porque sempre os cristãos estão na contra-mão da desestruturação do homem e sempre estão respondendo aos sinais dos tempos com a luz do Rosto de Cristo.

quarta-feira, 9 de março de 2016

A inesperada visita da Morte




Nos últimos dias, uma amiga tem visitado minha vida com muita freqüência: a Morte, minha irmã[1]!
Sim, a Morte. Mas, não pense que estou em surto psicótico e pensando em suicídio. Quando digo que a Morte tem me visitado, firmo-o pela triste constatação de que, em uma semana, pessoas muito próximas a mim viram seus entes queridos realizarem suas Páscoas[2].
Hoje[3], de modo particular, a visita da Morte a Frei Moser me encheu de consternação e me empurrou para o “alto da montanha[4]”, para a meditação e para a reflexão.
Como é conhecido de todos os teólogos e cristãos católicos do Brasil, Frei Moser era uma forte expressão da teologia nacional e um pastor muito dedicado às suas diversas atribuições. E isso não é uma “canonização” pela morte dele.  Pessoalmente, eu não tinha contato com o Frei e, por muitas vezes, discordo de seus posicionamentos sobre a moral cristã e sobre alguns pontos de interpretação dogmática. Contudo, reconheço sua genialidade intelectual e seu zelo apostólico.
Entretanto, o que me motivou a escrever esse ensaio foi o fato de perceber que uma vida tão cheia de bem e sentido, que fazia bem a tantas pessoas, que contribuiu para o fomento de uma geração inteira de sacerdotes e cristãos, que empenhou-se pela formação cultural da nação brasileira, foi covardemente colhida pela ganância de um homem incapaz de assumir sua condição humana em honestidade e trabalho, um monstro derivado do homem, mas distorcido e pervertido pela prática constante do mal e do pecado.
Não era a morte que incomodava minha mente, mas a crueldade de um semeador da verdade perder a vida pela pura crueldade de um instrumento do mal social instalado o sistema político em que vivemos; que um discípulo da paz tenha sido alvejado pela tirania da violência que reina sobre nós.
Essa provocação me mergulhou na contemplação de tudo o que o Frei Moser abriu mão para construir um mundo melhor, um mundo humano, um mundo bem diferente do que o que o assassinou. E, no balanço da vida, vejo que foram muitas as renúncias que esse homem fez...
Então, como que despertada por esta verdade de 75 anos de entrega, percebi que ontem eu tinha sido noticiado de que uma aluna de uma das unidades em que leciono também fizera sua Páscoa. Uma menina que mal começara a adolescência e que já havia sido visitada por minha querida amiga Morte, sob o disfarce cruel e silencioso da leucemia...
A crueldade de um criminoso, a dolorosa maldade da doença... Uma vida construída com tanto suor e lágrimas, outra que nem sequer pode começar a construir...
Pensei em Camus, com seu anti-herói Merseault[5], e em como a vida me pareceu absurda, como o suceder de momentos tornou-se vazio de repente, pois tudo teria um destino indeclinável: a dura e cruel pena da Morte.
Pela primeira vez na vida, essa amiga e irmã apresentou-se a mim com seu rosto frio e gélido, trazendo escuridão e vazio para cada um dos meus gestos e atos, encerrando minha existência inteira embaixo de sua imensa sombra. Não tive medo dela. Há muitos anos a fé arrancou esse medo de mim, mas confesso que tive medo da vida, de seu não sentido, de absurdo aparente e de como a morte tem o poder de aniquilar o a presunção humana: diante da morte não há mais beleza, inteligência, diploma, títulos, fama, sonhos. Há, apenas, terra e decomposição, podridão e pó!
Eu sei, parece cruel e melancólico. Talvez seja. E sendo, temos que admitir que isso é o real. Que há em nossa condição de seres pensantes um certo tédio e uma forte náusea causados justamente por essa aniquilação de nossas possibilidades, a que chamamos morte.
A descoberta dessa realidade fria da existência, fez Mersault desejar ser executado com uma multidão de expectadores que lhe dirigissem gritos de ódio. Era um home indiferente ao mundo e ao outro. Talvez, um devaneio meu, até indiferente a si mesmo. Um homem cujo tormento era a própria existência!
Me recusaria viver nesse estado, como também me recuso a viver na alienação narcótica de determinada fé fideísta, tão em voga e em moda em nosso tempo. Não! Nada de um existencialismo determinista e pessimista e nada de uma fé desencarnada e desencarnadora, desumana e moralista.
Novamente, nossa meditação nos coloca a caminho, em marcha! Até onde chegamos não é porto seguro para ancorar nossa existência. Então, recordei-me dos santos e de sua relação serena com a irmã Morte.
Sim, católicos e não católicos, precisamos reconhecer que esses homens e mulheres a quem a Igreja confere o título de “santos” eram pessoas excepcionais em suas sabedorias de vida, em sua humanidade e em sua capacidade de humanizar o mundo.
Percebi no eco de vida dos santos uma verdade que sempre me feriu e tocou: não é o amanhã, não é o sucesso e nem a chegada, é somente o agora que pode dar sentido ao caminho da minha vida; é somente o aqui que pode dar sentido às minhas ações; é somente no presente o ponto em que a Eternidade de Deus toca a realidade do meu tempo.
Em “O conto dos Três irmãos”, J.K. Rowling ensinou aos adolescentes do começo do século XXI um tesouro precioso, e que os santos, desde a Ressurreição de Jesus, tem testemunhado: quando se vive a vida cotidiana e simples de cada “hoje”, com as pessoas que amamos, a morte não é uma tirana que nos rouba a liberdade, mas antes, essa vida intensa nos ensinará a acolher a morte como uma vela amiga e a acompanhá-la de bom grado a fim de que, como iguais, partamos dessa vida[6]!
Sim, o “tempus fugit; vita brevis, carpe diem” continua ressoando hoje como uma excelente filosofia de vida, para vida e na vida. Viver o aqui e o agora de cada hoje que nos é dado em sua unicidade, com toda a intensidade de nossa consciência, com o zen de estar presente ao que estamos vivendo em cada momento, isso torna a vida grande, dissipa o temor da morte e esclarece nossa consciência. E recordemos: “Para uma mente bem estruturada, a morte é apenas uma aventura seguinte[7]
Assim, as mortes que visitaram minha vida essa semana, ao visitarem meus amigos, fizeram sentido: essas pessoas construíram-se e contraíram suas vidas a cada dia; tornaram-se imortais nas obras que realizaram, nas vidas que transformaram e nos ensinamentos que transmitiram...
Fico agora pensando em como foram felizes, em como cada momento foi único, em como descobriram o Eterno escondido no tempo. Espero que no momento de morte, também eu, vivendo tantos “aquis”, tantos “agoras”, assumindo tantos “hojes”, possa dizer, com o Apóstolo, “combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé” (II Tm: 4,7).



[1] Cf. São Francisco de Assis.
[2] A palavra Páscoa significa passagem e é uma crença que os cristãos, em Cristo, passam dessa vida para a Eternidade.
[3] Ensaio escrito em 09 de março de 2016.
[4] Cf. Assim Falou Zaratustra”
[5] CAMUS, Albert. O Estrangeiro.
[6] ROWLING, J.K. Os contos de Beedle, o Bardo.Rio de Janeiro: Rocco, 2008. Pag: 91
[7] ROWLING, J.K.. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro:Rocco, 2008. Pag: 254.

quarta-feira, 2 de março de 2016


AMIZADE: SER-PRESENÇA


Uma das características que mais chama a atenção na condição humana é a sua inclinação à sociabilidade. É um fato que o ser humano não é o único animal de vida social presente na natureza. Contudo, a sociabilidade humana se reveste de marcas e expressões que transcendem a todo cooperativismo presente no mundo animal.
Já Aristóteles afirmara que o homem é, por natureza, um animal político[1] e que, se foge dessa sua condição, é um ser vil, comparável às bestas, ou um ser superior ao próprio homem, comparados a um deus. Dado que o homem é o que é, admite-se que a vida social é o “ambiente” em que ele se realiza como ser e como pessoa, uma vez que ser “pessoa” significa dizer-de-si. Ora, nenhum sentido faz dizer-se se há não quem escute.
Nietzsche aponta na direção da necessidade de se romper o solipsismo do Eu ao dizer que “Eu e Mim estamos sempre em conversa acalorada: como seria possível suportar isso sem um amigo?[2]” Isto é, mesmo quando o Eu se põe a dizer de si para si, a tensão deste ensimesmamento clama por ser rompida por um Outro, por um alguém que reconheça a identidade do Eu e a acolha em sua singularidade, que a ame e que a ela se devote. Esse Tu que harmoniza a tensão interior de ser um Eu é o que chamamos de amigo.
A amizade é um tema muito caro à tradição Ocidental, quer seja por suas implicações psicológicas, como também por sua experienciação existencial. Aclamada como um altíssimo valor na literatura e na poesia, a amizade recebeu as mais inflamadas e belas demonstrações de afeto e estima da humanidade.
Quando pensamos no mundo Ocidental, olhando para o pano de fundo[3] que o constituiu, percebemos que a amizade é revestida de características divinas e é um atributo do próprio Deus Transcendente de Israel (Ex: 33,11); é apresentada como a comunhão de almas entre os que se deixam unir por esse laço de amor gratuito ( 1Sm: 18, 1ss); é uma companhia que o Redentor não nega, antes, solicita para dividir a tristeza e para comunicar a alegria (Mt: 26, 37; Mt: 17, 1-13); é o sinal requisitado pelo mesmo Messias para ser creditado confiança a alguém (Jo 21, 17). Assim, a amizade é, na perspectiva teológica, um dom e uma graça de participação no amor gratuito do Deus-Trindade (Eclo: 6, 1-17).
Da imensa riqueza cultural que a tradição teológica legou ao Ocidente acerca do conceito de amizade, uma das mais belas é o entendimento da amizade como um “estar face a face”. O estar “em face” de um outro é a condição de nascimento do homem. O macho humano chega à percepção de si mesmo e de sua singularidade ante a sua fêmea ( Gn: 2, 23), isto é, é diante da alteridade indeclinável do Outro e é na aceitação plena dessa diversidade que o Eu encontra seu lugar no mundo.
A idéia de celebrar a amizade como um relacionamento “face a face” é tão intrínseca ao fenômeno do relacionamento que Aristóteles[4] já o indicara ao dizer que “uma amizade dessa espécie [perfeita] exige tempo e intimidade.” Desse modo, entende-se que a amizade é o conhecimento mútuo entre duas pessoas, que desejam-se reciprocamente bem.
Contudo, esse conhecimento não deve ser entendido como algo superficial, uma vez que ele se realiza mediante o tempo transcorrido e com intimidade. No pensamento do Estagirita, a amizade é um relacionamento que está em constante processo de construção na história que as partes vão criando ao escolherem-se a cada dia novamente, “pois o desejo de amizade pode surgir depressa, porém a amizade não[5]”, uma vez que ela exige a prova do tempo como condição para sua legitimidade e autenticidade.
Outra conseqüência que a temporalidade traz à relação é a necessidade de presença. Justo porque a amizade exige tempo sincronizado e vivenciado pelos amigos, ela impõe às partes presença em um espaço existencial partilhado. De fato, para que haja a intimidade requerida pela amizade, deve haver, antes, proximidade e contato. O Filósofo de Estagira demonstra isso ao citar um provérbio que diz que “as pessoas não podem conhecer-se mutuamente enquanto não tiverem ‘consumido muito sal juntas’.”
Ora, a imagem do sal evoca duas realidades fundamentais:
Primeiro, que sal se consome em pequenas quantidades, de modo que até que se tenha tido a oportunidade de se “consumir muito sal”, muitas refeições (tempo) se passaram.
Além disso, o sal é consumido em refeições, isto é, na escolha de compartilhar com o outro aquilo que faz a manutenção da minha própria vida. Ter um amigo é ter a oportunidade de dar ao outro os dons que eu recebo ou realizo em minha própria existência; é viver uma mesma história, no desenrolar do mesmo tempo, mas em duas vidas, a do Eu e do Tu que compõe essa rica relação.
Disso depreende-se que a verdadeira amizade não admite virtualidades, relacionamentos artificiais entre as faces digitais que cada uma das partes decide mostrar ao mundo na sociedade do espetáculo que o século XXI se tornou. Na amizade, ou nos damos por inteiro e na realidade dura da vida cotidiana partilhada, ou simplesmente não há amizade.
Pode parecer duro ou retrógado, mas a verdade é que o contato de perfis e avatares não configuram a intimidade que só o “aqui e o agora” podem dar à consciência humana nos contatos que o “mundo da vida” possibilita; uma infinidade de mensagens enviadas jamais vão superar o poder do “estar ao lado”, do “fazer-se presente”. Por mais que os criadores das redes sócias insistam, tendo a acreditar que os contatos que lá estão serão sempre “contatos”, porque amigos são aqueles que compõe o mosaico da minha existência, que construíram meu ser com a partilha de suas histórias.
“Mas é natural que tais amizades sejam raras, pois homens assim também são raros.[6]



[1] ARITÓTELES, Política, I,1§9
[2] NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2014.
[3] A cultura judaico-cristã.
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. VIII, 1156 a, 5; 1156 b,25
[5] Idem,  1156 b, 30.
[6] Idem, ibdem.