Nos últimos
dias, uma amiga tem visitado minha vida com muita freqüência: a Morte, minha
irmã
!
Sim, a Morte.
Mas, não pense que estou em surto psicótico e pensando em suicídio. Quando digo
que a Morte tem me visitado, firmo-o pela triste constatação de que, em uma
semana, pessoas muito próximas a mim viram seus entes queridos realizarem suas
Páscoas
.
Hoje
,
de modo particular, a visita da Morte a Frei Moser me encheu de consternação e
me empurrou para o “alto da montanha
”,
para a meditação e para a reflexão.
Como é
conhecido de todos os teólogos e cristãos católicos do Brasil, Frei Moser era
uma forte expressão da teologia nacional e um pastor muito dedicado às suas
diversas atribuições. E isso não é uma “canonização” pela morte dele. Pessoalmente, eu não tinha contato com o Frei
e, por muitas vezes, discordo de seus posicionamentos sobre a moral cristã e
sobre alguns pontos de interpretação dogmática. Contudo, reconheço sua
genialidade intelectual e seu zelo apostólico.
Entretanto, o
que me motivou a escrever esse ensaio foi o fato de perceber que uma vida tão
cheia de bem e sentido, que fazia bem a tantas pessoas, que contribuiu para o
fomento de uma geração inteira de sacerdotes e cristãos, que empenhou-se pela
formação cultural da nação brasileira, foi covardemente colhida pela ganância
de um homem incapaz de assumir sua condição humana em honestidade e trabalho,
um monstro derivado do homem, mas distorcido e pervertido pela prática
constante do mal e do pecado.
Não era a
morte que incomodava minha mente, mas a crueldade de um semeador da verdade
perder a vida pela pura crueldade de um instrumento do mal social instalado o
sistema político em que vivemos; que um discípulo da paz tenha sido alvejado
pela tirania da violência que reina sobre nós.
Essa
provocação me mergulhou na contemplação de tudo o que o Frei Moser abriu mão
para construir um mundo melhor, um mundo humano, um mundo bem diferente do que
o que o assassinou. E, no balanço da vida, vejo que foram muitas as renúncias
que esse homem fez...
Então, como
que despertada por esta verdade de 75 anos de entrega, percebi que ontem eu
tinha sido noticiado de que uma aluna de uma das unidades em que leciono também
fizera sua Páscoa. Uma menina que mal começara a adolescência e que já havia
sido visitada por minha querida amiga Morte, sob o disfarce cruel e silencioso da
leucemia...
A crueldade de
um criminoso, a dolorosa maldade da doença... Uma vida construída com tanto
suor e lágrimas, outra que nem sequer pode começar a construir...
Pensei em
Camus, com seu anti-herói Merseault
,
e em como a vida me pareceu absurda, como o suceder de momentos tornou-se vazio
de repente, pois tudo teria um destino indeclinável: a dura e cruel pena da
Morte.
Pela primeira
vez na vida, essa amiga e irmã apresentou-se a mim com seu rosto frio e gélido,
trazendo escuridão e vazio para cada um dos meus gestos e atos, encerrando
minha existência inteira embaixo de sua imensa sombra. Não tive medo dela. Há
muitos anos a fé arrancou esse medo de mim, mas confesso que tive medo da vida,
de seu não sentido, de absurdo aparente e de como a morte tem o poder de
aniquilar o a presunção humana: diante da morte não há mais beleza,
inteligência, diploma, títulos, fama, sonhos. Há, apenas, terra e decomposição,
podridão e pó!
Eu sei, parece
cruel e melancólico. Talvez seja. E sendo, temos que admitir que isso é o real.
Que há em nossa condição de seres pensantes um certo tédio e uma forte náusea causados
justamente por essa aniquilação de nossas possibilidades, a que chamamos morte.
A descoberta
dessa realidade fria da existência, fez Mersault desejar ser executado com uma
multidão de expectadores que lhe dirigissem gritos de ódio. Era um home
indiferente ao mundo e ao outro. Talvez, um devaneio meu, até indiferente a si
mesmo. Um homem cujo tormento era a própria existência!
Me recusaria
viver nesse estado, como também me recuso a viver na alienação narcótica de
determinada fé fideísta, tão em voga e em moda em nosso tempo. Não! Nada de um existencialismo
determinista e pessimista e nada de uma fé desencarnada e desencarnadora,
desumana e moralista.
Novamente,
nossa meditação nos coloca a caminho, em marcha! Até onde chegamos não é porto
seguro para ancorar nossa existência. Então, recordei-me dos santos e de sua
relação serena com a irmã Morte.
Sim, católicos
e não católicos, precisamos reconhecer que esses homens e mulheres a quem a
Igreja confere o título de “santos” eram pessoas excepcionais em suas
sabedorias de vida, em sua humanidade e em sua capacidade de humanizar o mundo.
Percebi no eco
de vida dos santos uma verdade que sempre me feriu e tocou: não é o amanhã, não
é o sucesso e nem a chegada, é somente o agora que pode dar sentido ao caminho
da minha vida; é somente o aqui que pode dar sentido às minhas ações; é somente
no presente o ponto em que a Eternidade de Deus toca a realidade do meu tempo.
Em “O conto
dos Três irmãos”, J.K. Rowling ensinou aos adolescentes do começo do século XXI
um tesouro precioso, e que os santos, desde a Ressurreição de Jesus, tem
testemunhado: quando se vive a vida cotidiana e simples de cada “hoje”, com as
pessoas que amamos, a morte não é uma tirana que nos rouba a liberdade, mas
antes, essa vida intensa nos ensinará a acolher a morte como uma vela amiga e a
acompanhá-la de bom grado a fim de que, como iguais, partamos dessa vida
!
Sim, o
“tempus fugit; vita brevis, carpe diem”
continua ressoando hoje como uma excelente filosofia de vida, para vida e na
vida. Viver o aqui e o agora de cada hoje que nos é dado em sua unicidade, com
toda a intensidade de nossa consciência, com o
zen de estar presente ao que estamos vivendo em cada momento, isso
torna a vida grande, dissipa o temor da morte e esclarece nossa consciência. E recordemos:
“
Para uma mente bem estruturada, a morte
é apenas uma aventura seguinte”
Assim, as mortes
que visitaram minha vida essa semana, ao visitarem meus amigos, fizeram
sentido: essas pessoas construíram-se e contraíram suas vidas a cada dia;
tornaram-se imortais nas obras que realizaram, nas vidas que transformaram e
nos ensinamentos que transmitiram...
Fico agora
pensando em como foram felizes, em como cada momento foi único, em como
descobriram o Eterno escondido no tempo. Espero que no momento de morte, também
eu, vivendo tantos “aquis”, tantos “agoras”, assumindo tantos “hojes”, possa
dizer, com o Apóstolo, “combati o bom combate,
completei a carreira, guardei a fé” (II Tm: 4,7).