domingo, 16 de julho de 2017

Deus está morto! ... Será?

Uma vez, depois de uma das minhas aulas de filosofia, uma aluna me esperava no corredor. Naqueles dias, estávamos enfrentando Nietzsche e essa aluna sentiu-se muito "impactada" com sequência de aulas sobre a Morte de Deus! Bem, ela me conhecia das minhas pregações e ministrações, das minhas aulas de Teologia e de Catequese!
Me olhando nos olhos, deixando transparecer sua luta interior entre a fé que professava e o processo de assimilação de tudo o que tínhamos discutido, que ela estava internalizando e que existencialmente a contigiara... Então, ela me perguntou:
- Jedi, como você, que é cristão, pode falar com tanta convicção de autores como Nietzsche? Como o senhor pode concordar com ele se cremos, você e eu, em um Deus vivo, na moral e na Verdade? Não acho que minha fé seja um erro, mas concordo com o que você disse de Nietzsche... Estou confusa!
Diante de tamanha sinceridade, só tinha como resposta a minha verdade:
- Padawan, eu não vejo contradição entre a experiência existencial proposta por Nietzsche e a verdade que recebemos de Deus! Aqui, sou professor de filosofia. Não seria honesto com vocês que eu usasse minhas aulas para convencer vocês das minhas convicções ou Verdades... Aqui, minha função é pastorear vocês pela história do pensamento, por aquilo que os filósofos disseram, eu concordando ou não. Aqui, o que importa é que cheguemos a entender o que o outro disse para, então, podermos escolher melhor nossos caminhos. Veja, Nietzsche diz coisas que nos ajudam a entender o que foi o século XX e nos esclarece o modo de viver do século XXI: o niilismo é real em nossos dias! Não precisamos ser ateus como ele, mas sem dúvidas podemos ouvir e concordar com o que ele diz. Lembra do aforismo 125 de "A Gaia ciência"? Vamos lá:

"O homem Louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos?2 O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”

Percebe? O homem acende uma lanterna em pleno dia, quer dizer, prefere a segurança de suas conquistas à realidade objetiva da vida que lhe é dada! Muitas vezes, abrimos mão da vida que nos é dada por convicções de outros que nos são impostas como verdades únicas e absolutas! Não, a vida é mais que isso! A "morte de Deus" é a morte da ideia ocidental desse princípio justificador da dominação que achamos ter sobre a vida, o sentido e a realidade! De fato, não temos domínio sobre isso, sobre nada disso! Temos interpretação, na verdade, várias delas.... Mas elas são isso, interpretações! Veja que não é Deus quem morre aqui, isso, por princípio, seria paradoxal: se há Deus, Ele é Eterno! O que morre, o que de fato morre, é a pretensão soberba e vulgar da nossa condição humana de dominar e manipular o real com nossas verdades que, muitas vezes, anulam o outro, aniquilam a alteridade e a nossa própria disposição de viver a vida com intensidade!
Vamos entender o que Nietzsche quis dizer de viver a vida com intensidade no aforismo 56:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!“ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Entende, fazemos tantas coisas na vida que não gostaríamos, que nos pesam, que não suportamos, mas fazemos porque nos dizem que é certo, que é correto, que é o que esperam de nós! Ora, mas quem tem o direito de esperar algo de nós a não ser nós mesmos? Quem tem o direito de por a estrada sob nossos pés a não ser o desejo de nosso coração? Nos medimos pelos outros, pelo convívio com os outros e "no convívio com sábios e artistas facilmente nos enganamos no sentido oposto: não é raro encontrarmos por detrás dum sábio notável um homem medíocre, e muitas vezes por detrás de um artista medíocre - um homem muito notável." Perdemos tempo demais com julgamentos sobre nós mesmos e sobre os outros, quando a única coisa que importa de verdade é viver a vida com amor, no amor, para o amor... E o amor não julga, não condena! Antes, acolhe e respeita! "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal." Ninguém viverá a nossa vida e ninguém morrerá a nossa morte! Somos os únicos responsáveis pelas decisões que tomamos! E quando essa decisão é a de sermos que fomos feitos para ser, em plena abertura para o outro  e quando assim fazemos, o Outro se revela a nós! O plenamente Outro, o Totalmente Outro se achega a nossa humanidade quando reconhecemos a humanidade do outro homem! A isso chamamos, nós cristãos, de santidade! Aos santos, cabe a admiração e reverência justamente porque viveram! Aos santos, cabe o que Nietzsche chamou de Super-homem!  O niilismo negativo do Cristianismo hipócrita e farisaico deve ser superado! O niilismo reativo dos cientistas e dos comunistas não pode nos salvar de nós mesmos e de nossas misérias! O niilismo passivo dos nossos vícios e autoenganos nos condena a uma morte existencial! Só a santidade pode trazer direção a nós! Como disse a Gaudium et Spes, só Ele revela o homem ao próprio homem...

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