Antígona e Creonte. – Pedagogia moderna e as virtudes antifamiliares. –
Patrimonialismo – O “homem cordial”. – Aversão aos ritualismos: como se
manifesta ela na vida social, na linguagem, nos negócios. – A religião e a
exaltação dos valores cordiais.
O Estado não é uma ampliação do círculo
familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas
vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe,
entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas
formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o
século décimo nono. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições
descenderiam em linha reta, e por simples evolução da Família. A verdade, bem
outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da
ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se
faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as
leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do
intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração
sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma
procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem
familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência.
Ninguém exprimiu com mais intensidade a
oposição e mesmo a incompatibilidade fundamental entre os dois princípios do
que Sófocles. Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta
contra essa realidade concreta e tangível que é a família. Antígona, sepultando
Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que
não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos
cidadãos, da pátria:
“E todo aquele que acima da
Pátria
Coloca seu amigo, eu o terei
por nulo.”
O conflito entre Antígona e Creonte é de
todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias. Em todas as
culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se
acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar
profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos
temas fundamentais da história social. Quem compare, por exemplo, o regime do
trabalho das velhas corporações e grêmios de artesãos com a “escravidão dos
salários” nas usinas modernas, tem um elemento precioso para o julgamento da
inquietação social de nossos dias. Nas velhas corporações o mestre e seus
aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se
sujeitavam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e
confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e
empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas
funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e
estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além
disso, ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de
salários ínfimos.
Para o empregador moderno — assinala um
sociólogo norte-americano — o empregado transforma-se em um simples número: a
relação humana desapareceu. A produção em larga escala, a organização de
grandes massas de trabalho e complicados mecanismos para colossais rendimentos,
acentuou, aparentemente, e exacerbou, a separação das classes produtoras,
tornando inevitável um sentimento de irresponsabilidade, da parte dos que
dirigem, pelas vidas dos trabalhadores manuais. Compare-se o sistema de
produção, tal como existia quando o mestre e seu aprendiz ou empregado
trabalhavam na mesma sala e utilizavam os mesmos instrumentos, como o que
ocorre na organização habitual da corporação moderna. No primeiro, as relações
de empregador e empregado eram pessoais e diretas, não havia autoridades
intermediárias. Na última, entre o trabalhador manual e o derradeiro
proprietário — o acionista — existe toda uma hierarquia de funcionários e
autoridades representados pelo superintendente da usina, o diretor-geral, o
presidente da corporação, a junta executiva do conselho de diretoria e o
próprio conselho de diretoria. Como é fácil que a responsabilidade por
acidentes do trabalho, salários inadequados ou condições anti-higiênicas, se
perca de um extremo ao outro dessa série.[1]
A crise que acompanhou a transição do
trabalho industrial aqui assinalada pode dar uma ideia pálida das dificuldades
que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as
instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a
substituir-se aos laços de afeto e de sangue. Ainda hoje persistem, aqui e ali,
mesmo nas grandes cidades, algumas dessas famílias “retardatárias”,
concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se
os filhos apenas para o círculo doméstico. Mas essas mesmas tendem a
desaparecer ante as exigências imperativas das novas condições de vida. Segundo
alguns pedagogos e psicólogos de nossos dias, a educação familiar deve ser
apenas uma espécie de propedêutica da vida na sociedade, fora da família. E se
bem considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada vez mais,
a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer,
das “virtudes” familiares. Dir-se-á que essa separação e essa libertação
representam as condições primárias e obrigatórias de qualquer adaptação à “vida
prática”.
Nisso, a pedagogia científica da atualidade
segue rumos precisamente opostos aos que preconizam os antigos métodos de
educação. Um dos seus adeptos chega a observar, por exemplo, que a obediência,
um dos princípios básicos da velha educação, só deve ser estimulada na medida
em que possa permitir uma adoção razoável de opiniões e regras que a própria
criança reconheça como formuladas por adultos que tenham experiência nos
terrenos sociais em que ela ingressa. “Em particular — acrescenta — a criança
deve ser preparada para desobedecer nos pontos em que sejam falíveis as
previsões dos pais”. Deve adquirir progressivamente a individualidade, “único
fundamento justo das relações familiares”. “Os casos frequentes em que os
jovens são dominados pelas mães e pais na escolha das roupas, dos brinquedos,
dos interesses e atividades gerais, a ponto de se tornarem incompetentes, tanto
social, como individualmente, quando não psicopatas, são demasiado frequentes
para serem ignorados”. E aconselha: “não só os pais de ideias estreitas, mas
especialmente os que são extremamente atilados e inteligentes, devem
precaver-se contra essa atitude falsa, pois esses pais realmente inteligentes
são, de ordinário, os que mais se inclinam a exercer domínio sobre a criança.
As boas mães causam, provavelmente, maiores estragos do que as más, na acepção
mais generalizada e popular destes vocábulos”.[2]
Com efeito, onde quer que prospere e assente
em bases muito sólidas a ideia de família — e principalmente onde predomina a
família de tipo patriarcal — tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições
a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de
adaptação indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no
nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por
excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de
iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos.
Entre nós, mesmo durante o Império, já se
tinham tornado manifestas as limitações que os vínculos familiares demasiado
estreitos, e não raro opressivos, podem impor à vida ulterior dos indivíduos.
Não faltavam, sem dúvida, meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas
vezes acarretam certos padrões de conduta impostos desde cedo pelo círculo
doméstico. E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos
de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São
Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos
capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes
arrancados aos seus meios provinciais e rurais, de “viver por si”,
libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos
conhecimentos que ministravam as faculdades.
A personalidade social do estudante, moldada
em tradições acentuadamente particularistas, tradições que, como se sabe,
costumam ser decisivas e imperativas durante os primeiros quatro ou cinco anos
de vida da criança,[3] era forçada a ajustar-se, nesses casos, a novas
situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma
revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos,
atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.
Transplantados para longe dos pais, muito
jovens, os “filhos aterrados” de que falava Capistrano de Abreu, só por essa
forma conseguiam alcançar um senso de responsabilidade que lhes fora até então
vedado. Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o
vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão
oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez
mais igualitária. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pode dizer que “em nossa
política e em nossa sociedade [...] são os órfãos, os abandonados, que vencem a
luta, sobem e governam”.[4]
Tem-se visto como a crítica dirigida contra
a tendência recente de alguns Estados para a criação de vastos aparelhamentos
de seguro e previdência social, funda-se unicamente no fato de deixarem margem
extremamente diminuta à ação individual e também no definhamento a que tais
institutos condenam toda sorte de competições. Essa argumentação é própria de
uma época em que, pela primeira vez na história, se erigiu a concorrência entre
os cidadãos, como todas as suas consequências, em valor social positivo.
Aos que, com razão de seu ponto de vista,
condenam por motivos parecidos os âmbitos familiares excessivamente estreitos e
exigentes, isto é, aos que os condenam por circunscreverem demasiado os
horizontes da criança dentro da paisagem doméstica, pode ser respondido que, em
rigor, só hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas vezes, verdadeiras
escolas de inadaptados e até de psicopatas. Em outras épocas, tudo contribuía
para a maior harmonia e maior coincidência entre as virtudes que se formam e se
exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem
entre os cidadãos. Não está muito distante o tempo que o Dr. Johnson fazia ante
o seu biógrafo, a apologia crua dos castigos corporais para os educandos e
recomendava a vara para “o terror geral de todos”. Parecia-lhe preferível esse
recurso a que se dissesse, por exemplo, ao aluno: — Se fizeres isto ou aquilo,
serás mais estimado do que teu irmão ou tua irmã. — Porque, segundo dizia a
Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem
incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com
isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem
uns aos outros.
No Brasil, onde imperou, desde tempos
remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da
urbanização — que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também
do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a
esfera de influência das cidades — ia acarretar um desequilíbrio social, cujos
efeitos permanecem vivos ainda hoje.
Não era fácil aos detentores das posições
públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a
distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se
caracterizavam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro
burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”,
a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse
particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere,
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos,
como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização
das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos
cidadãos.[5] A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de
acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de
acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que
caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com
a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços
burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático,
quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.
No Brasil, pode dizer-se que só
excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários
puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao
contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em
círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses
círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e
desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia
incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência dos
chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração — está em que
as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo
obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as
instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos,
pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.
Já se disse, numa expressão feliz, que a
contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao
mundo o “homem cordial”.[6, ler esta nota especialmente] A lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos
padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano
supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São
antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode
exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se
sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a
ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem
notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à
divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras
sociais de demonstrar respeito.
Nenhum povo está mais distante dessa noção
ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio
social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na
aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são
espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em
fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo
servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que
permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções.
Por meio de semelhante padronização das
formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se
manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado
dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E,
efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo.
No “homem cordial”, a vida em sociedade é,
de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da
existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada
vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom americano
— tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse
tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: “Vosso mau amor de vós
mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”.[7]
Nada mais significativo dessa aversão ao
ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea
e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem,
geralmente, os brasileiros, de uma reverência prolongada ante um superior.
Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase
somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais
familiar. A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua
réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. E isso é tanto
mais específico, quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão
próximos de nós em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência.
No domínio da linguística, para citar um
exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o
emprego dos diminutivos. A terminação “inho”, aposta às palavras, serve para
nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes
dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de
aproximá-los do coração. Sabemos como é frequente, entre portugueses, o
zombarem de certos abusos desse nosso apego aos diminutivos, abusos tão
ridículos para eles quanto o é para nós, muitas vezes, a pieguice lusitana,
lacrimosa e amarga.[8] Um estudo atento das nossas formas sintáticas traria,
sem dúvida, revelações preciosas a esse respeito.
À mesma ordem de manifestações pertence
certamente a tendência para a omissão do nome de família no tratamento social.
Em regra é o nome individual, de batismo, que prevalece. Essa tendência, que
entre os portugueses resulta de uma tradição com velhas raízes — como se sabe,
os nomes de família só entram a predominar na Europa cristã e medieval a partir
do século XII — acentuou-se estranhamente entre nós. Seria talvez plausível
relacionar tal fato à sugestão de que o uso do simples prenome importa em
abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem
famílias diferentes e independentes umas das outras. Corresponde à atitude
natural aos grupos humanos que, aceitando de bom grado uma disciplina da
simpatia, da “concórdia”, repelem as do raciocínio abstrato ou que não tenham
como fundamento, para empregar a terminologia de Tönnies, as comunidades de
sangue, de lugar ou de espírito.[9]
O desconhecimento de qualquer forma de
convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um
aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com
facilidade. E é tão característica, entre nós, essa maneira de ser, que não
desaparece sequer nos tipos de atividade que devem alimentar-se normalmente da
concorrência. Um negociante de Filadélfia manifestou certa vez a André
Siegfried seu espanto ao verificar que no, no Brasil como na Argentina, para
conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.[10]
Nosso velho catolicismo, tão característico,
que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve
parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos
motivos. A popularidade, entre nós, de uma Santa Teresa de Lisieux — Santa
Teresinha — resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto,
culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as
distâncias. É o que também ocorreu com o nosso menino Jesus, companheiro de
brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos
do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho
da Infância. Os que assistiram às festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em
São Paulo, conhecem a história do Cristo que desce do altar para sambar com o
povo.
Essa forma de culto, que tem antecedentes na
Península Ibérica, também aparece na Europa Medieval e justamente com a
decadência da religião palaciana, superindividual, em que a vontade comum se manifesta
na edificação dos grandiosos monumentos góticos. Transposto esse período —
afirma um historiador — surge um sentimento religioso mais humano e singelo.
Cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o
padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como
entes privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e
plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus
é um amigo familiar, doméstico e próximo — o oposto do Deus “palaciano”, a quem
o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor
feudal.[11]
O que representa semelhante atitude é uma
transposição característica para o domínio do religioso desse horror às
distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico
do espírito brasileiro. Note-se que ainda aqui nós nos comportamos de modo
perfeitamente contrário à atitude já assinalada entre japoneses, onde o
ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais rigor. No
Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza.
Essa aversão ao ritualismo conjuga-se mal, —
como é fácil imaginar — com um sentimento religioso verdadeiramente profundo e
consciente. Newman, em um dos seus sermões anglicanos, exprimia a “firme
convicção” de que a nação inglesa lucraria se sua religião fosse mais
supersticiosa, more bigoted, se estivesse mais acessível à influência popular,
se falasse mais diretamente às imaginações e aos corações. No Brasil, ao
contrário, foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e
familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, “democrático”, um
culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre
si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. É
significativo que, ao tempo da famosa questão eclesiástica, no Império, uma
luta furiosa, que durante largo tempo abalou o país, se tenha travado
principalmente porque D. Vital de Oliveira se obstinava em não abandonar seu
“excesso de zelo”. E o mais singular é que, entre os acusadores do bispo de
Olinda, por uma intransigência que lhes parecia imperdoável e criminosa,
figurassem não poucos católicos, ou que se imaginavam sinceramente católicos.
A uma religiosidade de superfície, menos
atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior,
quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda
verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos,
ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social
poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que,
por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma
elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só
apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a
vontade. Não admira pois, que nossa República tenha sido feita pelos
positivistas, ou agnósticos e nossa Independência fosse obra de maçons. A estes
se entregou com tanta publicidade nosso primeiro Imperador que o fato chegaria
a alarmar o próprio Príncipe de Metternich, pelos perigosos exemplos que
encerrava sua atitude.
A pouca devoção dos brasileiros e até das
brasileiras é coisa que se impõe aos olhos de todos os viajantes estrangeiros,
desde os tempos do Padre Fernão Cardim, que dizia das pernambucanas
quinhentistas serem “muito senhoras e não muito devotas, nem frequentarem
missas, pregações, confissões, etc.”.[12] Auguste de Saint-Hilaire, que visitou
a cidade de São Paulo pela semana santa de 1822, conta-nos como lhe doía a
pouca atenção dos fiéis durante os serviços religiosos. “Ninguém se compenetra
do espírito das solenidades” — observa — “Os homens mais distintos delas
participam apenas por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo.
No ofício de Endoenças, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do
bispo. Olhavam à direita e à esquerda, conversavam antes desse momento solene e
recomeçavam a conversar logo depois”. As ruas, acrescenta pouco adiante,
“viviam apinhadas de gente, que corria de igreja a igreja já, mas somente para
vê-las, sem o menor sinal de fervor”.[13]
Em verdade, muito pouco se poderia esperar
de uma devoção que, como essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos
fortes e que, para ferir as almas, há de ferir primeiramente os olhos e os
ouvidos. “Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que
caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas, esplendorosas”, nota
o Pastor Kidder, “quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos
lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente
fervoroso”.[14] Outro visitante, de meados do século passado, manifesta
profundas dúvidas sobre a possibilidade de se implantarem algum dia, no Brasil,
formas mais rigoristas de culto. Conta-se que os próprios protestantes logo
degeneram aqui, exclama. E acrescenta: “É que o clima não favorece a severidade
das seitas nórdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais florescerão
nos trópicos”.[15]
A exaltação dos valores cordiais e das
formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem
representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda
da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de
eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento
social. Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo
ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros
observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é
necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de
defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante
disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a,
como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar
a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho,
assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades.
Notas
[1]
F. Stuart Chapin, Cultural change (Nova York, 1928), pág. 261.
[2]
Knight Dunlap, Civilized Life. The Principles and Applications of Social
Psychology (Baltimore, 1935), pág. 189.
[3]
Margaret Mead, Ruth Shoule Cavan, John Dollard e Eleanor Wembridge, “The
Adolescent Word. Culture and Personality”, The American Journal of Sociology,
julho, 1936, pág. 84 e segs.
[4] “A perda da mãe na infância — diz ainda — é um
acontecimento fundamental na vida, dos que transformam o homem, mesmo quando
ele não tem consciência do abalo. Desde esse dia ficava decidido que Nabuco
pertenceria à forte família dos que se fazem asperamente por si mesmos, dos que
anseiam por deixar o estreito conchego da casa e procurar abrigo no vasto
deserto do mundo, em oposição aos que contraem na intimidade materna o instinto
doméstico predominante. Hércules não se preocupava de deixar os filhos na
orfandade, diz-nos Epiteto, porque sabia que não há órfãos no mundo.” — Joaquim
Nabuco, op. cit., I, pág 5.
[5] Max Weber, op. cit., II, pág. 795 e segs.
[6] A expressão é do escritor Ribeiro Couto, em
carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey.
Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que
a palavra “cordial” há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e
estritamente etimológico, se não tivesse sido contrariamente interpretada em
obra recente de autoria do Sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial
dos aperitivos e das “cordiais saudações”, “que são fechos de cartas tanto
amáveis como agressivas” e se antepõe à cordialidade assim entendida o “capital
sentimento” dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa “técnica da
bondade”, “uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora”.
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a
diferença, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra
e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão
“cordialidade”, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as
intenções apologéticas a que parece inclinar-se o Sr. Cassiano Ricardo, quando
prefere falar em “bondade” ou em “homem bom”. Cumpre ainda acrescentar que essa
cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo
social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos
positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade,
nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo,
do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo
consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos “grupos primários”, cujo
unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito “não é somente de
harmonia e amor”. A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos
sentimentos privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto
que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a
inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente
hostilidade. A distinção entre inimizade e hostilidade, formulou-a de modo
claro Carl Schmitt recorrendo ao léxico latino: “Hostis is est cum quo publice
bellum habemus [...] in quo ab inimico differt, qui est is, quocum habemus
privata odia...” Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen,
Hamburgo, s. d. [1933], pág. 11, nota.
[7]
Friedrich Nietzsche, Werke, Alfred Kröner Verlag, IV (Leipzig, s. d.), pág. 65.
[8] O mesmo apego aos diminutivos foi notado por
folcloristas, gramáticos e dialetólogos em terras de língua espanhola,
especialmente da América, e até em várias regiões da Espanha (Andaluzia,
Salamanca, Aragão...). Com razão observa Amado Alonso que a abundância de
testemunhos semelhantes e relativos às zonas mais distintas, prejudica o
intento de se interpretar o abuso de diminutivos como particularismo de cada
uma. Resta admitir, contudo, que esse abuso seja um traço do regional, da
linguagem das regiões enquanto oposta à geral. E como a oposição é maior nos
campos do que nas cidades, o diminutivo representaria sobretudo um traço da
fala rural. “A profusão destas formas — diz Alonso — denuncia um caráter
cultural, uma forma socialmente plasmada de comportamento nas relações
coloquiais, que é a reiterada manifestação do tom amistoso em quem fala e sua
petição de reciprocidade. Os ambientes rurais e dialetais que criaram e
cultivam essas maneiras sociais costumam ser avessos aos tipos de relações
interpessoais mais disciplinadas das cidades ou das classes cultas, porque os
julgam mais convencionais e mais insinceros e inexpressivos do que os seus”.
Cf. Amado Alonso, “Noción, Emoción, Acción y Fantasia en los Diminutivos”,
Volkstum und Kultur der Romanen, VIII, 1º (Hamburgo, 1935), págs. 117-18. No
Brasil, onde esse traço persiste, mesmo nos meios mais fortemente atingidos
pela urbanização progressiva, sua presença pode denotar uma lembrança e um
survival, entre tantos outros, dos estilos de convivência humana plasmados pelo
ambiente rural e patriarcal, cuja marca o cosmopolitismo dos nossos dias ainda
não conseguiu apagar. Pode-se dizer que é um traço nítido da atitude “cordial”,
indiferente ou, de algum modo, oposta às regras chamadas, e não por acaso, de
civilidade e urbanidade. Uma tentativa de estudo da influência exercida sobre
nossas formas sintáticas por motivos psicológicos semelhantes encontra-se em
João Ribeiro, Língua nacional (São Paulo, 1933), pág. 11.
[9] Ou sejam as categorias: 1) de parentesco; 2) de
vizinhança; 3) de amizade.
[10] André Siegfried, Amérique latine (Paris,
1934), pág. 148.
[11]
Prof. Dr. Alfred Von Martin, “Kultursoziologie des Mittelalters”,
Handwörterbuch der Soziologie (Stuttgart, 1931), pág. 383.
[12] Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do
Brasil (Rio de Janeiro, 1925), pág. 334.
[13] Auguste de Saint-Hilaire, Voyage au Rio Grande
do Sul (Orléans, 1887), pág. 587.
[14]
Rev. Daniel P. Kidder, Sketches of residence and travels in Brazil, (Londres,
1845), pág. 157.
[15]
Thomas Ewbank, Life in Brazil or a journal of a visit to the land of cocoa and
the palm (Nova York, 1856), pág. 239.